A catarse intelectual e afetiva – de que nos fala Bachelard (1996) – é ainda mais necessária na Região Norte, mas para remover os restolhos políticos. Esta catarse, a revolução cultural, o salto qualitativo, dialético, o recolhimento do Princípio do Terceiro Excluído, precisam chegar ao establishment. As elites culturais precisam remover as dificuldades políticas, econômicas, institucionais que nos condicionam.
Nossos obstáculos epistemológicos são do presente, ou seja, da política – e apenas este passado/presente da política é que nos condiciona como cerceamento ontológico. Os “erros reificados” são o exemplo das teorias sociais racistas que, há pouco tempo, afirmavam não ser possível pensar nos Trópicos. Nossos tristes trópicos são políticos, não epistemológicos.
“No novo homem ainda vive o velho homem” e isto é resultado da política elitista – especialmente da política que não nos permite realizar a pesquisa e a reflexão do mundo que nos cerca. Não há ciência sem pesquisa, é óbvio, e se a política impede a pesquisa, logo, é a política responsável por um falso dilema epistemológico.
O que Bachelard teria a oferecer ao jurista da Região Norte é o desafio para que se atrevesse a pensar (um sapere aude, um conhecimento ousado). Atrevendo-se a pensar além das coisas, ou seja, além do pragmatismo jurídico. Atrás das coisas, o direito está vivo, diria Ehrlich: “Querer encerrar todo o direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza numa lagoa (Teich). O que vai para ela não é mais uma correnteza viva, mas águas mortas, e muita água não entra nela de jeito algum (2001, p. 110)”.
No espírito científico de Bachelard precisamos oferecer à razão jurídica, razões para evoluir. Para a ciência, o problema do direito está na ineficácia da pesquisa empírica. A pesquisa empírica não é o melhor dote do jurista. E com isso também acaba por desprezar o realismo jurídico que nos assinalou Michelet (1988). Na base do realismo de Bachelard precisamos “delinear os fenômenos”, ordenar, oferecer a seriação dos acontecimentos decisivos da experiência jurídica.
Todavia, não é só em Rondônia ou no Amapá e Roraima que não se pratica a pesquisa jurídica empírica. Afinal, o pensamento jurídico precisa alcançar onde o cientista chega – entre o concreto e o abstrato; para só depois alçar voos mais altos para o concreto/pensado, em que o conceito conhece a força da práxis.
O problema político não concede tempo ao conceito, porque o jurista tem de responder ao poder e à sociedade cada vez mais rapidamente. Com isso, não há tempo para a ciência; pois é preciso a abstração para desobstruir o espírito.
De modo prático, o problema político impede o acesso ao livro e isso gera o falso dilema epistemológico do “livro não compreendido”. Pois, quanto mais livros não lidos, é óbvio, mais livros serão incompreensíveis. Então, talvez tenhamos um problema/desafio de epistemologia política, em que a política é barreira de passagem à episteme. E este também não é um problema jurídico?
Pois sim, trata-se da negação do direito subjetivo: “Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sonhos” (Bachelard, 1996, p. 10). O problema político formou elites culturais, como “prova da sonolência do saber” e da avareza do homem erudito que não compartilha o conhecimento. Armazenado em tanques isolados, este tipo de cultura rumina velhas lições e se vê vítima do “ouro acariciado”.
Perdemos rapidamente o tempo para a objeção, cultivamos a alma professoral e que impõe as demonstrações de sua autoridade no princípio dedutivo. No pensamento jurídico, como de resto na intelectualidade passiva/repetitiva de lições filosóficas especulativas, é preciso cultivar almas em dificuldade, aplicando-se aos jogos indutivos imperfeitos, portanto, seguros de que a abstração é um dever. Mas uma abstração que flua da realidade, da visão empírica dos fatos que afligem o homem médio.
Para Bachelard – e isto em tudo se aplica ao direito –, é preciso derrubar o utilitarismo, voltar o espírito ao humano. Um humanismo como construção não apenas lógica, mas política e social; como inclusão participativa: da representação do poder à abstração do direito. Este pensamento abstrato é o que identifica o próprio direito.
Na presença do Outro, desligados da mesquinharia do interesse individual, o pensamento se liberta da opressão das necessidades concretas, imediatas, limitadas. Na presença do direito, o pensamento se abstrai da realidade finita e se abre como uma janela em que observamos a existência de outras pessoas.
O pensamento abstrato se caracteriza pela capacidade do sujeito de direito absorver a legitimidade externa às suas necessidades e interesses. A externalidade social que está no sujeito de direitos, mas que o suplanta, é o componente social do direito e o núcleo do pensamento abstrato, como núcleo ético, de interesse da sociedade.
De modo pragmático, mas como pensamento reflexivo e não cristalizado, é que pensamos e ofertamos esta pequena contribuição à academia. O livro Teorias do Estado – metamorfoses do Estado Moderno é resultado do ensino na disciplina Teoria Geral do Estado, por sete anos. O livro retrata temas relevantes, clássicos e atuais.
Em vários capítulos é apresentada a temática da cidadania e dos direitos. Mas, em especial, há um capítulo sobre o Estado Democrático de Direito Social, no Brasil. Neste capítulo procuro refletir sobre a realidade social sem perder de vista a função teleológica do direito, esta visão de futuro, de perspectiva e de horizontes mais amplos. Afinal, a cidadania é uma conquista diária, nunca assegurada em definitivo, nem na política, nem no direito. A cidadania é uma espécie de combinação entre direitos, liberdade e garantias – as garantias necessárias para que o direito tenha alcance e fruição com ampla liberdade.