Hoje é dia 31 de dezembro de 2018, isso mesmo, o ano está acabando, e que ano. Confesso que esperava ansioso por esse momento de glória, da mesma forma que projeto um 2019 com o ceticismo vulgar de quem anda bem incomodado com os rumos de como estamos pensando o mundo, cada vez mais polarizado, cada vez mais permeado de obscurantismo intelectual, cada vez mais simplificado em sua complexidade.
Foi um ano em que se discutiu de tudo, e dessas discussões (por vezes trazidas
à cena por leigos muito bem preparados em seus escopos) foram construídas narrativas com a falta de pudor daqueles que se arvoram de detentores do supra sumo da verdade, na defesa de coisas tipo: a terra é plana, não vacine seus filhos, Einstein e Newton são charlatões, nazismo é uma ideologia de esquerda, pepsi cola adoça seus refrigerantes com fetos abortados, combustível fóssil é uma farsa, dentre outras, mas sempre nessa mesma linha.
São ideias que vem sendo lançadas no mar de ignorância onde habitam seres não pensantes já há algum tempo. Neste ano elas, muitas vezes, foram elevadas ao status de “verdades absolutas”. Não porque fazem sentido (não fazem), mas muito por conta dos interlocutores das mesmas. A coisa é meio que messiânica, e dentro dessas características, não podem ser refutadas, afinal são tratadas como dogmas.
E pasmem, tem muita gente que compra essas ideias.
No final das contas senhoras e senhores, trata-se de uma pura e simples forma de negacionismo da existência de tudo que de científico existe sobre determinados temas, demonizando-os, e trazer para a narrativa uma “revisão” baixa, subjetiva e ideologizada sobre eles.
Vivemos a era de negar o conhecimento científico, a era da simplificação da reflexão sobre temas complexos e substitui-la por uma “live” em alguma rede social. Está
formada a nova era da pós verdade por essas terras. Pra que tenho que me dedicar tanto aos estudos se todo conhecimento que preciso ter posso encontrar em um vídeo de 10 minutos? Para que o esforço, a dedicação, a reflexão, se tudo já vem pronto, numa espécie de delivery pós-moderno de conhecimento ao seu alcance em apenas um ou dois clicks?
Mas o que isso tem a ver com nossa relação com o Direito, como ciência social, como a forma que escolhemos para encontrarmos solução para nossos conflitos e cooperarmos em busca de prosperidade como espécie? Existe negacionismo no Direito? Estamos tratando dele da forma como merece ser tratado, ou o estamos tratando tendo como premissa nossas ideias pessoais, nosso entendimento subjetivo e moralista de como devem ser solucionados os conflitos postos, de como devemos cooperar uns com os outros?
Em suma, o Direito tem sido nossa régua, nosso gabarito, quando o aplicamos ao caso concreto na busca da pacificação de um conflito?
O Direito é nossa ficção, nosso mito, nossa ordem imaginada, como escreveu HARARI em seu Sapiens, uma Breve História da Humanidade:
“Acreditamos em uma ordem em particular não porque seja objetivamente verdadeira, mas porque acreditar nela nos permite cooperar de maneira eficaz e construir uma sociedade melhor. Ordens imaginadas não são conspirações malignas ou miragens inúteis. Ao contrário, são a única forma pela qual grandes números de seres humanos podem cooperar efetivamente”.
Segundo o autor, nossa capacidade de criar mitos, ordens imaginadas (que não existem no mundo físico das coisas), foi o que nos tornou, como espécie (sapiens), dominadores do mundo, foi o que nos fez cooperar uns com os outros sem a necessidade de contato pessoal físico. Não é preciso que eu lhe convença pessoalmente a lutar pela tribo, basta você acreditar na minha ideia. Isso faz com que pessoas que nunca se viram pessoalmente possam lutar em nome de um objetivo comum.
O Direito é nossa realidade imaginada, nosso mito, nossa ficção. Por que um pássaro voa, porque tem asas ou porque tem o direito de voar? Parece que as asas os fazem voar, o direito de voar nós criamos, nós construímos.
Muito interessante o conceito de legalidade trazido pelo professor, ilustre Paulo Bonavides:
“O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas“.
O Direito, então, tem o objetivo de nos proteger do subjetivismo imprevisível dos governantes. Ele é nosso escudo protetor. Será que ele nos tem protegido? Será que ele está nos livrando do subjetivismo arbitrário e imprevisível de quem tem o dever de aplicar nosso mito na prática?
Não é incomum ouvirmos, mesmo em círculos de profissionais do Direito, coisas como: nossa constituição tem muitos direitos, nossa constituição só protege bandido, temos que mudar tudo isso aí, defendo a pena de morte, defendo o fim dos direitos humanos (fundamentais), etc, etc.
Vivemos no Direito o mesmo negacionismo que vemos reverberar em outros debates nacionais? O Poder Judiciário tem “comprado” essas ideias, com decisões negacionistas? Ficam os questionamentos. Vivemos a era do Direito Terra Plana?
Convém destacar que negar é diferente de revisar. Quando se revisa, ainda se parte de uma premissa já consolidada, no nosso caso o Direito, como construção histórica. A negação, ao nosso ver, se baseia, via de regra, em premissas obscuras e pessoais, longe
da realidade empírica, mas muito perto de uma forma particular que cada um pode ter do mundo, das ideias, das coisas. Não raras vezes suas premissas são tidas como dogmas.
Será que ainda acreditamos na força do Direito, na força da lei, como forma de pacificação social? Nossa ordem imaginada, nosso mito, ainda faz com que possamos cooperar uns com os outros na busca linear e racional da solução de nossos conflitos?
Deixar de acreditar no Direito (nossa ordem imaginada) é abrir espaço para o arbítrio, para o obscuro. A defesa do Direito nestes tempos, passar ter relevância ímpar, sob pena de vermos todo um sistema construído à duras penas, colapsar. Não nos esqueçamos que, com o colapso, abre-se espaço para o preenchimento do vácuo por outros mitos, por outras formas de pensar o mundo, que, no nosso caso, atende pelo nome de arbítrio.
Sobre essa reflexão, HARARI escreve:
“Uma ordem natural é uma ordem estável. Não existe a menor chance de que a gravidade deixe de funcionar amanhã, mesmo que as pessoas deixem de acreditar nela. Por sua vez, uma ordem imaginada está sempre sob ameaça de colapso, porque depende de mitos, e os mitos desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles. Para salvaguardar uma ordem imaginada, são necessários esforços árduos e contínuos”.
Que no ano que está por vir, possamos refletir profundamente sobre a forma como estamos tratando nosso mito (O Direito). Parece que temos o dever de deixarmos para as gerações futuras algo melhor do que nos entregaram. Que meu ceticismo seja somente uma forma de fazer com que meu espírito se mantenha alerta, reflexivo e atento.
2019 – seu lindo -, seja um ano de resgate do conhecimento, da ciência, do Direito.
Amém.