A prática de atos de corrupção nas instituições governamentais foi, sem dúvida, um dos temas mais candentes do processo eleitoral deste ano de 2014. Os ânimos acirrados pelo bipartidarismo de fato que permeia o multipartidarismo oficial muitas vezes obscureceu os desejáveis debates sobre as propostas dos candidatos, transformando-se em uma competição com finalidade de demonstrar quem detinha mais conhecimento sobre “denúncias de escândalos” do outro lado.
E um dos casos mais representativos desta distorção do debate político foram as denúncias de corrupção na Petrobrás, trazidas à tona pela operação da Polícia Federal batizada de “Lava Jato”, que investigou esquemas de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, e apontou como suspeitas diversas pessoas com ligações no meio político institucional. O pivô do caso foi Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Refino e Abastecimento da Petrobras: preso em 20 de março de 2014 sob a alegação de destruição de provas que seriam utilizadas na investigação, Costa obteve direito à prisão domiciliar em troca de apontar outros envolvidos no caso. Ou seja, foi premiado por sua delação.
Mas o caso de Costa não parou por aí: feito o depoimento, seu conteúdo foi divulgado para a imprensa, o que seria supostamente justificado pela ausência de decretação de segredo de justiça, em contraposição ao “interesse público” e “necessidade de transparência” no processo. Ora, uma coisa é não vedar o acesso ao conteúdo de um processo em razão de sua publicidade determinada constitucionalmente, outra bem diferente é divulgar um depoimento na imprensa, em processo que envolve partidos políticos, e tudo isso às vésperas de um processo eleitoral. Ademais, a própria finalidade da delação premiada fica comprometida na medida em que coloca em risco o delator, e, com ele, os trâmites da investigação em curso: é algo tão percebido mesmo pelo senso comum que as penitenciárias, de realidade bem distante do conforto das salas do Ministério Público Federal e da Polícia Federal adotam a prática de manter a cela do “seguro”, cujos usuários preferenciais são os “caguetas”.
A delação premiada é instituto relativamente novo no ordenamento jurídico brasileiro: sua primeira previsão legal é de 1990, na Lei dos Crimes Hediondos (diploma legal de constitucionalidade e eficácia constantemente questionados por juristas desde sua promulgação), e consiste na possibilidade de conferir ao acusado algum benefício em troca de sua colaboração com a investigação do crime. Posteriormente foi inserida em outros textos legais, e seu uso tem sido cada vez mais estendido no sistema de justiça e aplaudido pela opinião pública.
A adoção da delação premiada merece questionamentos éticos sérios, já que corresponde, efetivamente, a um incentivo institucional para a prática da caguetagem mediante a concessão de benefícios que, se forem um direito do acusado, condicionar seu deferimento a um ato do réu configura verdadeira chantagem, e, se não forem de direito, é ilegal concedê-los independentemente de qualquer colaboração. Seria importante refletir sobre o que simboliza estar sob o jugo de uma autoridade que negocia direitos individuais em função de uma prática moralmente questionável.
A recorrência com que se utilizam procedimentos de delação premiada toma tal monta que já há advogados especializados no tema, o que gera ainda um necessário debate: o que significa especializar-se em “caguetagem”? Quais são os conhecimentos que um profissional do Direito deve dominar para que possa defender os interesses de seu cliente em um trâmite de escambo de sua liberdade concedida à custa de trocas espúrias de informações? Ou, ainda mais grave: é possível, ético e moral o advogado acompanhar a delação de um cliente e em seguida advogar para quem foi citado na própria delação? A pensar nesta linha de raciocínio, especializar-se em delação premiada pode se tornar a mais vil das formas de captação de clientela.
E isso para não entrar em questões práticas sobre a forma muitas vezes coercitiva como os “acordos” são firmados, impondo-se condições tais como a obrigar o acusado a desistir de quaisquer recursos para poder se beneficiar da delação. Ilustremos imaginando a seguinte situação: uma pessoa é presa em decorrência de uma busca e apreensão ilegal (ilegalidade esta que contamina todo o procedimento dela decorrente, por força de lei e da Constituição Federal), e na situação de extrema vulnerabilidade que é a de se encontrar detido e à mercê de agentes estatais, oferecem-lhe os benefícios da delação premiada, contanto que desista de discutir as eventuais ilegalidades que sofreu. Quem, afinal, se beneficia do acordo? O acusado chantageado em nome de sua liberdade ou o Estado que abusa de sua autoridade e se sai impune de qualquer alegação neste sentido?
São estes os valores que o Estado pretende adotar como pano de fundo do sistema de justiça criminal?
Se vamos decidir por adotar a prática da delação premiada, com todas as críticas e implicações éticas ao instituto, é imperioso que se faça com todas as garantias aos direitos subjetivos do acusado, pois o que se transige na delação é o direito de punir do Estado – que abre mão de uma punição mais severa em troca de informações para esclarecer um crime -, e não o direito à liberdade do cidadão, que acaba verdadeiramente coagido a dispor de direitos fundamentais para ver-se livre da prisão.
Em suma, repudiamos a adoção da delação premiada. Acrescentamos, porém, que as críticas aqui expostas dizem respeito, por óbvio, ao instituto proposto e não a seus participantes (e vale aqui uma especial menção ao juiz Sérgio Moro, integrante da magistratura federal do Paraná, que, independentemente de quaisquer diferenças ideológicas sempre se pautou com absoluto respeito e correção), até porque o cotidiano da advocacia criminal acaba obrigando em algum momento do trabalho à atuação em uma delação, muitas vezes necessária e benéfica para o cliente, o que é, infelizmente, compreensível em um Estado cada vez mais policialiesco e punitivista. Partindo da premissa de que sua inclusão em nosso ordenamento jurídico já é uma realidade, não nos cabe ignorá-lo – mas sua forma não pode se equiparar a uma chantagem e seus meios devem ser estritamente legais, cabendo ao advogado absoluto cuidado e ética em sua prática.
Não se pode instrumentalizar o processo criminal para outra finalidade que não a limitação do poder de punir do Estado em face do cidadão, especialmente em um processo como este que envolve a Petrobras, com tantas reverberações políticas, e mais, que não se encerrou e no qual as pessoas apontadas no depoimento ainda não tiveram direito ao contraditório. Condutas como essa empobrecem em muito as informações ali contidas para fins de esclarecimento do público e incita ainda mais disputas passionais ao invés de contribuir para um debate produtivo em um processo eleitoral no qual os cidadãos já discutiam de forma tão inflamada e beligerante. Como sempre, medidas antidemocráticas não apenas prejudicam indivíduos, mas comprometem todo um pensamento coletivo: perdemos todos.
Por Roberto Podval e Maíra Zapater