Em diversos momentos históricos, a vocação contramajoritária da advocacia reafirmou-se. Seria inconsequente tentar enumerá-los, porém, sem pretensão de exaustividade, diríamos que ela se torna mais evidente em, pelo menos, duas espécies de circunstância em que há ruptura com a ordem jurídica predecessora: nas revoluções e nas ditaduras. Tem sido destacado o papel da advocacia em momentos como a Revolução Francesa, em que foram impiedosamente (pre)julgados os destituídos do poder; e como as ditaduras latino-americanas, em especial a brasileira, quando foi negado o devido processo legal a muitos opositores políticos, ao mesmo tempo em que se assistiu ao agigantamento do aparelho repressivo do Estado em direção à eliminação sem tréguas das liberdades individuais.
Liderança máxima da Revolução Russa, Lenin – curiosamente, um advogado de formação – costumava dizer: “advogados, nem os do Partido”. Sua postura denota a relação de desconfiança que os revolucionários triunfantes costumam manter com a advocacia. Em todos os momentos revolucionários, era natural que os grupos que se apossavam do poder tendessem a abusar da força contra os grupos então destituídos; prenunciava-se a perseguição contra reis, nobres, estadistas, grandes proprietários e apoiadores do antigo regime, militantes políticos e opositores do sistema em instauração. “Os primeiros acusados a ser julgados são sempre os representantes do antigo regime deposto, depois os contra-revolucionários; por vezes, seguem-se-lhes os revolucionários pouco exaltados ou desviacionistas”.2 Nesses momentos conturbados, a ira contra os julgados volta-se contra a advocacia incumbida de por eles interceder.
Nas trocas de regime político (quer por meio de participação popular, nas revoluções, quer por meio de golpes de Estado, nas ditaduras), minorias são impiedosamente sacrificadas: eis a essência revolucionária. E por elas ninguém costuma intervir senão a advocacia. Há aqueles regimes revolucionários ou ditatoriais que eliminam seus inimigos por meio de procedimentos judiciais e os que o fazem sem sequer recorrer a um julgamento que lhes confira aparência de legalidade. Os tribunais encarregados de tal julgamento dificilmente não estão contaminados pela paixão política, pela influência irresistível ou mesmo pelas ameaças das forças dominantes, de modo que a esses opositores só resta a defesa técnica realizada pela advocacia. É a advocacia, portanto, a classe que se mantém leal aos princípios de justiça e às requisições constitucionais da igualdade, da liberdade e do devido processo legal: “(…) uma figura permanece, com maior ou menor liberdade, autorizada a falar nesse circo dos horrores convertido em tribunal. É o advogado”.3
A advocacia dá voz a quem não a tem. Sua função é vicária, isto é, exercida por delegação de outrem – seja quando o advogado vocaliza as reivindicações de seu constituinte no processo judicial, no âmbito do contraditório, seja quando o aconselha, orienta, ou representa na condição de mandatário. A função de dar voz ao indivíduo em julgamento é eminentemente pública, uma vez que diz respeito diretamente à administração pública da justiça. A origem da advocacia, logo, está ligada à necessidade pública de defesa dos direitos. Sua raiz etimológica já denuncia a que veio: palavra proveniente do latim advocatus, significa ajudante, defensor, assistente ou patrono de quem foi chamado em juízo; por sua vez, radica no verbo advocare – chamar a si, convocar, chamar em auxílio, invocar a assistência –, razão pela qual, no direito romano, o advocatus era basicamente quem sugeria ou aconselhava, ancorado em seu experto conhecimento em matérias jurídicas.4 Advocacia é atividade pública, visto que ligada inexoravelmente ao exercício da cidadania:
O exercício de direitos, a defesa de direitos, a proteção aos desvalidos, a ampliação dos direitos, a construção de uma juridicidade justa são funções concomitantes do exercício da cidadania e do exercício da advocacia. Por definição, a advocacia é uma atividade cidadã. Separar a advocacia do exercício da cidadania é deformar sua natureza, é desvesti-la daquilo que ela tem de mais significativo: os valores da cidadania e da democracia. O exercício dessa profissão dá voz a quem não a tem. 5
Vemos essa vocação pública da advocacia repetir-se cotidianamente e, de tempos em tempos, marcar a história da humanidade. Qualquer lista que selecionasse nomes e julgamentos memoráveis seria arbitrária. Por ora, façamos referência somente a) ao julgamento de Luís XVI, monarca francês deposto pela Revolução, em que seus defensores, sobretudo o brilhante Raymond de Sèze, honraram a bandeira histórica da defesa dos direitos dos objurgados; e, para trazer a questão a um ambiente mais próximo espacial e cronologicamente, destaquemos a atuação da advocacia em dois contextos críticos do panorama político-social brasileiro: b) nas ditaduras de 1937/1945 e 1964/1985.
a) A França do final do século XVIII foi palco de uma série de surpreendentes eventos que marcaram indelevelmente a trajetória humana. Em uma aliança inusitada com o baixo clero, com a pequena nobreza liberal e com os advogados detentores do conhecimento humanista, o Terceiro Estado (representante dos comuns, ou seja, dos que não eram nem nobres nem clérigos) conseguiu o inacreditável feito de destronar o rei, abolir a monarquia de séculos e instaurar a República. Os partidários republicanos da Assembleia Nacional Constituinte de 1789 viam como empecilho a seu novo projeto político a existência de um ex-rei, rasto de um passado absolutista a ser superado. Decidiu-se, pois, julgar Luís XVI – doravante chamado simplesmente de Luís Capeto – pelos supostos crimes capitais de traição à pátria que teria cometido.
Criada em 20 de setembro de 1792, a Convenção Nacional – tribunal de exceção, pois instalado após os fatos sob julgamento – arrogou-se o direito de decidir o destino do monarca afastado. O julgamento de Luís XVI começou em 11 de dezembro de 1792, primeira etapa de um caminho que o levaria ao cadafalso em 21 de janeiro de 1793. O desfecho do tribunal, porém, já era de muito pressentido: a fúria antimonarquista faria de tudo para impingir-lhe culpa, mesmo à revelia da Constituição, a qual tornava o rei inimputável por seus atos durante o exercício do reinado e o rebaixava a cidadão comum após esse período. Luís afinal não foi julgado nem como rei, nem como cidadão, já que lhe foram negadas as garantias concedidas pela lei a qualquer francês. Tudo isso se deu com o apoio da massa da população:
Diabolicamente, [os Jacobinos] ligam a sua destruição [do rei Luís] à existência da República. Porque, explicam os seus propagandistas, se o sangue do povo correu no dia 10 de agosto e se já alguns que o derramaram subiram ao cadafalso (no dia 17 de agosto foi instituído um tribunal criminal) será admissível que o seu chefe seja poupado e que conserve no Templo a espada a seu lado? Esta sobrevivência, este escândalo são crimes contra a Revolução. É preciso, para que se faça justiça, que Capeto morra e compete à Convenção enviá-lo ao carrasco. Teoria supremamente astuciosa: como ousariam os deputados erguer-se contra uma população superexcitada, fanatizada, com o risco de serem tidos por cúmplices da monarquia e dos antipatriotas? 6
De pronto já se mostrava a vontade da Convenção de decidir pela culpabilidade, pouco importando os argumentos que pudessem ser trazidos à baila pela defesa. Foram sintomáticas algumas manifestações. Merlin de Thionville, da Comuna de Paris, vociferou: “Depois de ter decretado a abolição da monarquia, é tempo de mostrar finalmente à Convenção que um rei destronado não é sequer um cidadão e que é preciso que caia sob a justiça nacional e que todos aqueles que com ele conspiraram o sigam no cadafalso”.7 Bourdon, deputado pelo Oise, proclamou: “Luís cairá sob o machado da lei, não imolado à vingança, mas sacrificado à segurança e à justiça”.8 E, por sua vez, Robespierre: “O voto nacional já se pronunciou. Luís XVI está julgado. Deve ser punido ou a República é uma quimera”.9 No mesmo sentido concluiu o relatório de Saint-Just: “(…) Luís XVI deve ser julgado como um inimigo estrangeiro. Não é necessário que a sua condenação à morte seja submetida à sanção do povo. Compete à Assembleia decidir se Luís é o inimigo do povo francês, se é estrangeiro”.10 O próprio Luís XVI tinha consciência da delicadeza de sua situação e do quanto estava exposto às violações das garantias processuais; em seu testamento, descreve a si mesmo “privado de toda comunicação, implicado num processo no qual não se encontra nenhum pretexto ou qualquer meio na lei existente, apenas tendo Deus por testemunha dos seus pensamentos e a quem se possa dirigir”.11 Uma opinião mais prudente, contudo, foi proferida no relatório de Mailhe, que invocou o “direito natural de defesa” e o direito de conhecer a acusação: “para se pronunciar sobre a vida de um homem, é preciso ter debaixo dos olhos os autos de acusação; é preciso ouvir o acusado se ele reclama o direito natural de ser ele próprio a falar com os seus juízes. Estas duas condições elementares, que não podem ser violadas sem injustiça (…)”.12
Vitoriosa a tese do direito de defesa e do devido processo, a Convenção permitiu a Luís nomear um “conselho de defesa”. Este foi formado por Malesherbes, Target, Tronchet13 e Sèze. Depois de interrogado sem testemunhas de acusação ou de defesa, ao que negou todas as acusações ou se escudou sob a proteção constitucional, Luís XVI teve seu conselho de defesa ouvido. A fala de Raymond de Sèze é ilustrativa de toda a bravura de um advogado que não se deixa intimidar pelos humores das massas ou pela impetuosidade indômita de um tribunal de acusadores. Suas palavras estão eternamente inscritas nos anais da história da advocacia.
De início, demonstrou que a inviolabilidade da pessoa do rei era um princípio intangível da Constituição, além do que os erros cometidos pelo rei estavam cobertos pela anistia geral decretada em setembro de 1791. Observou ainda que o art. 8 da Constituição incluía o rei na classe dos cidadãos, inclusive para os efeitos de acusação e julgamento no que concerne aos atos posteriores à abdicação.14 Anotou que seu cliente não podia ser culpado pelos atos dos ministros de Estado. E foi pelos direitos comuns a qualquer cidadão que Séze clamou na parte mais memorável de seu discurso:
Onde estão as formas conservadoras que todo cidadão tem o direito de reclamar? Onde está a separação dos poderes, sem a qual não pode existir constituição, nem liberdade? Onde estão os jurados de acusação e julgamento, espécie de reféns dados pela lei aos cidadãos pela garantia da sua segurança e da sua inocência? Onde está essa faculdade tão necessária de rejeição que ela própria colocou à frente dos ódios ou das paixões para as afastar? Onde está a proporção de sufrágios que ela tão sabiamente estabeleceu para afastar a condenação ou para a suavizar? Onde está o escrutínio silencioso, que leva o juiz a recolher-se antes de se pronunciar, e que encerra por assim dizer na mesma urna a sua opinião e o testemunho de sua consciência? Numa palavra, onde estão todas essas precauções religiosas que a lei tomou para que o cidadão, mesmo culpado, não seja nunca atingido senão por ela? (…) Procuro, entre vós, juízes e apenas vejo acusadores! Quereis pronunciar-vos sobre a sorte de Luís e haveis já emitido o vosso desejo! Querei pronunciar-vos sobre a sorte de Luís e as vossas opiniões percorrem a Europa! Luís será portanto o único francês para o qual não existirá nenhuma lei nem forma! Não terá nem os direitos de cidadão, nem as prerrogativas de rei. Não gozará nem de sua antiga condição nem da nova: que estranho e inconcebível destino!15
Encerrou seus memoriais de forma magistral: “Detenho-me perante a história. Pensai que ela julgará o vosso julgamento e que o seu será o dos séculos”.16 Mas de nada adiantou a evocação dos direitos e garantias do réu. Por 691 votos a 31, Luís XVI foi declarado pela Convenção, em nome do povo francês, “culpado de conspiração contra a liberdade da nação e atentado contra a segurança geral do estado”.17 Por uma estreita e questionável maioria de 5 votantes, foi condenado à morte na guilhotina.18 Ainda assim, sua alocução ecoa até hoje como símbolo da atuação contramajoritária da advocacia na defesa dos direitos dos cidadãos que enfrentam a máquina de um processo penal e a cólera de uma população enraivecida. Sèze e outros nomes dignos de figurar entre os grandes da profissão estarão sempre certos ao conclamar os invioláveis direitos das minorias; mesmo que talvez a contragosto, em outro contexto e com outras intenções, o próprio Robespierre – um dos mais implacáveis acusadores e, paradoxalmente, também um renomado advogado – teve de reconhecê-lo: “a minoria tem em toda a parte um direito eterno: o de fazer ouvir a voz da verdade ou aquilo que ela tem por verdade. A virtude foi sempre em minorias sobre a terra: Sócrates, Catão, pertenciam à minoria”.19 E é missão precípua da advocacia fazer ressoar essa voz abafada, instada a calar-se perante a arbitrariedade.
Sèze, assim como seus pares, agiu com o destemor que deve caracterizar a advocacia e servi-la de horizonte ético. Mesmo ao adentrar a sessão vaiado, hostilizado e acossado, não se permitiu, em nenhum momento, deixar-se intimidar pela animosidade da plateia. Sua coragem mostrou-se extraordinária em um momento em que a advocacia era confundida com a parte, levando muitos advogados à execução juntamente com seus clientes; em que se confundia a defesa do acusado com a defesa do crime. Nunca é supérfluo rememorar que não se pode confundir a figura do acusado com a de seu defensor. Como bem sumarizou, em eloquente máxima, o ex-Presidente do Conselho Federal da OAB Rubens Approbato, “o advogado não defende o pecado, mas aquele tido como pecador”. 20
É direito e dever da advogada e do advogado assumir a defesa criminal sem considerar a própria opinião sobre a culpa do acusado. Rui Barbosa, em famoso trecho de carta enviada a Evaristo de Morais, lecionou:
tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas deve acatar rigorosamente. 21
A advocacia não se cala diante da ignomínia, mesmo que, para isso, ponha a si mesma em risco. Conhecidas são as palavras de Malhesherbe ao Tribunal Revolucionário: “trago à Convenção a minha palavra e a minha cabeça. Podeis dispor da segunda, desde que ouçais a primeira”.
b) O Brasil republicano do século XX vivenciou dois regimes de exceção, que podem, em tom categórico, ser considerados ditaduras. Não por acaso, ambos eclodiram como retaliação aos alegados riscos de um domínio comunista em ascensão. As sanguinárias ditaduras do Estado Novo (1937/1945) e do regime civil-militar (1964/1985) foram responsáveis por uma impiedosa perseguição política aos seus opositores, utilizando-se dos meios mais cruéis imagináveis para puni-los, admoestá-los, chantageá-los, inibi-los e arrancar-lhes confissões. Por vias reflexas, foram também supliciados os advogados e as advogadas dos perseguidos políticos, numa tentativa de amedrontá-los e dissuadi-los da luta pelos direitos dos acusados, pela correta aplicação das leis e pela plenitude da ordem jurídica justa.
O período do governo de Getúlio Vargas que coincidiu com o apogeu dos regimes totalitários na Europa foi marcado pela vigência da Lei de Segurança Nacional (LSN, lei 38/1935) e pelo ativismo do Tribunal de Segurança Nacional (TSN). A LSN considerava crimes contra a ordem pública basicamente quaisquer atos de oposição ao sistema político estabelecido, ante os quais franqueava ao Governo Federal múltiplos poderes de repressão. Semelhante “caça às bruxas” levou à prisão, em poucos meses, lideranças comunistas e aproximadamente 901 civis e 2.146 militares apenas no Distrito Federal.22 Entre os instrumentos repressivos mantidos pelo Governo estava o TSN, criado em 1936. No ano seguinte, esse tribunal encaminhou ofícios à recém-fundada Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) solicitando a nomeação de advogados para presos políticos. Consoante diagnóstico de Evandro Lins e Silva: “aí começa a vocação institucional da OAB a se tornar efetiva na prática, na atividade judiciária, no dia-a-dia do foro, através de seus membros, daqueles que foram designados para a defesa dos presos políticos de então, dos perseguidos daquela época”. 23
O mais destacado advogado de causas políticas dessa época foi Sobral Pinto, figura que povoa o imaginário da advocacia brasileira. Dr. Sobral ganhou notoriedade inicial ao ser indicado para a defesa dos líderes comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger. Embora de profunda formação católica, conservadora e anticomunista, o eminente patrono acudiu com prontidão a causa, honrando seu compromisso com a natureza acolhedora da advocacia, que não prejulga seus clientes, antes conflui para lhes assegurar aquilo a que têm direito em qualquer ordem jurídica razoável: o direito de defender-se em um processo judicial. Assim se exprimiu em carta endereçada a Targino Ribeiro, então presidente do Conselho do Distrito Federal: “… eu a acato [defesa de Prestes e Berger] como dever indeclinável da nossa nobre profissão. (…) Quaisquer que sejam as minhas divergências do comunismo materialista – e elas são profundas –, não me esquecerei, nesta delicada investidura, que o Conselho da Ordem me impôs, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, A DEFESA”.24 Interviu em benefício de muitos clientes mesmo sem remuneração, sempre em nome da integridade de sua consciência moral e do seu senso de justiça. Denunciou em todas as oportunidades as indefensáveis arbitrariedades do regime político em vigor:
Sois, meus caros confrades, os testemunhos mais autorizados das penas e perigos a que fica sujeito, nos nossos dias, o advogado, que chamado para atuar perante os Tribunais Políticos, tenha a noção exata das responsabilidades de sua profissão. Os deveres do Estado, que nos são impostos pela nossa vocação de auxiliares da Justiça, nos obrigam, de momento a momento, a invocar, para o bem de defendermos os nossos patrocinados princípios indeclináveis de natureza moral e jurídica, em face de autoridades que só sabem cultuar a força física, ou servir os interesses pessoais dos atuais dominadores do país. 25
O reconhecimento de sua aguerrida atuação contramajoritária em prol dos direitos dos oprimidos pelo regime lhe rendeu a primeira Medalha Ruy Barbosa em 1971, a mais alta comenda da advocacia. Dada a sua longa trajetória, passou pelo arrefecimento do autoritarismo e pela redemocratização, porém enfrentou, em seguida, outras duas décadas ditatoriais.
Mais uma vez valendo-se do subterfúgio de combater o avanço do comunismo, as Forças Armadas brasileiras, com apoio de parte da elite econômica civil, instalaram, em 1964, um regime de exceção que deveria ser transitório, mas acabou por durar 21 anos. A exacerbação da violência de Estado, contudo, viria a acontecer com a decretação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), em dezembro de 1968. Até outubro de 1969, o Congresso Nacional ficou em recesso. Nesse ínterim houve o maior índice de punições políticas e produção de leis de exceção da história nacional. O Supremo Tribunal Federal foi diretamente atingido: sua composição passou de 16 para 11 membros, com a aposentação compulsória dos ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva, e Hermes Lima, ao passo que sua competência para julgar os chamados “crimes contra a segurança nacional” foi transferida para a Justiça Militar.26 A reação austera do regime ao sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick agravou ainda mais a situação do ponto de vista dos direitos humanos: foi baixado o AI-14, que permitia prisão perpétua e pena de morte; e foi sancionada uma nova Lei de Segurança Nacional. 27
Diante da barbárie institucionalizada, a OAB, na condição de representante oficial da advocacia, permaneceu como trincheira na conservação dos direitos. Participou, em 1969, da criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão de composição mista voltado à investigação de violações aos direitos humanos, cujos feitos não chegaram a ser totalmente eficazes, mas sinalizaram alguma esperança. A autonomia da Ordem, no entanto, foi ameaçada pelo decreto 74.000, de 1974, que vinculava a Instituição ao Ministério do Trabalho. Mesmo assim, passou a intensificar a campanha pelo restabelecimento do habeas corpus e da soberania popular do júri. O então Presidente do Conselho Federal, José Cavalcanti Neves (1971/1973), enviou ofício ao Presidente Médici reivindicando o eficaz funcionamento do CDDPH, a restauração do habeas corpus, a revogação da pena de morte, o pleno funcionamento do Judiciário e o respeito pelo livre exercício da advocacia.28 Tais requerimentos eram urgentes, pois, na guerra contra o cerceamento das liberdades públicas, a própria advocacia foi gravemente afetada: das muitas prisões arbitrárias de advogados de perseguidos políticos, a mais conhecida foi a de Heleno Fragoso (Vice-Presidente da OAB-Guanabara), Augusto Sussekind (Conselheiro Federal do Paraná) e George Tavares em novembro de 1970.29
A prática de arbitrariedades contra advogados e advogadas de presos políticos se alastrou. Procurava-se afetá-los para indiretamente se atingir seus clientes, os quais confiavam sua vida, sua liberdade e sua integridade àqueles. Dom Paulo Evaristo Arns escreveu:
Nesses tempos terríveis percebi que um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram os advogados. Um grupo de profissionais de direito que naquela época de muitos temores arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos, gratuitamente, as vítimas da violência política. 30
Poderíamos mencionar, entre os vários nomes da advocacia que militaram incansavelmente pela liberdade durante o regime de exceção, sendo alguns inclusive presos e torturados: Sobral Pinto, Heleno Fragoso, Modesto da Silveira, Wellington Cantal, Eny Moreira, Manoel Martins, George Tavares, Augusto Sussekind, Idibal Pivetta, Albertino de Souza Oliva, Sigmaringa Seixas, Técio Lins e Silva, José Gregori, José Carlos Dias, Mércia Albuquerque, Eugênio Lyra, Dyrce Drach, Airton Soares e Marcello Cerqueira. Notáveis também são os nomes dos juristas e dirigentes e conselheiros da OAB: Raymundo Faoro, José Cavalcanti Neves, José Ribeiro de Castro Filho, Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal, entre outros.
Grande expressão da posição assumida pela OAB na luta pelos direitos civis foi a Declaração de Curitiba, assinada em 9 de junho de 1972, que defendia, entre os principais pontos, a volta do habeas corpus e das garantias do Judiciário, o respeito ao exercício dos direitos individuais e manutenção da integridade física e moral dos presos, o fim da restrição à atividade dos advogados em defesa dos clientes e o respeito aos direitos humanos como condição para o progresso econômico. Em trecho da Tese n. 1 da “Conferência Sobre Os Direitos do Homem e Sua Tutela Jurídica”, relatada por Heleno Fragoso, lê-se:
1. Não pode haver efetiva proteção e tutela dos direitos humanos, senão no Estado de direito, onde o primado da lei ponha as liberdades fundamentais a salvo do arbítrio e da preponderância dos governantes, através de regime de segurança. 2. No aperfeiçoamento, defesa e efetiva realização dos direitos do homem, destaca-se a responsabilidade dos advogados. Essa responsabilidade não pode ser eficazmente desempenhada senão com respeito às prerrogativas profissionais e independência no exercício da profissão (…)”.31
Em resumo, a advocacia atua de forma contramajoritária na medida em que defende em juízo os direitos de seus constituintes contra as violações e acusações consumadas pelo Poder Público. A partir dessa perspectiva, pode-se dizer que o indivíduo ou as minorias, contanto que representados em juízo, encontram na figura da advogada ou do advogado um suporte diante da irascível arbitrariedade que acomete a opinião pública e o julgamento popular. A natureza contramajoritária da advocacia não se reduz a mera elucubração dogmática, porquanto pode ser identificada em vários momentos históricos, dos quais salientamos as revoluções e as ditaduras, principais modalidades de ruptura de uma ordem jurídica em vigência. Trouxemos dois momentos históricos que julgamos pertinentes para ilustrar nossa tese: em primeiro lugar, a Revolução Francesa foi tida como o evento em que se consolidou a atuação contramajoritária da advocacia na cultura ocidental; em segundo lugar, as ditaduras brasileiras do Estado Novo e do regime civil-militar instaurado em 1964 demandaram a mesma compreensão acerca da advocacia no Brasil, sem prejuízo de eventos históricos anteriores. Na primeira situação, um grupo de patronos realizou a improvável e complicada defesa do rei deposto Luís XVI, contrariando uma opinião pública em fúria e o quase ilimitado poder político da Convenção Nacional revolucionária. A equipe de advogados convocada por Luís XVI – da qual fez parte o insigne jurista Raymond de Sèze –, todavia, não hesitou, em nenhum instante, em seu compromisso com o direito de defesa e com os direitos humanos do acusado. Na segunda situação, foi realçada a atuação da advocacia em defesa de perseguidos e presos políticos, primeiramente pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo e, em uma segunda etapa, pelas instituições repressivas da ditadura civil-militar.
Nesta, vários advogados e advogadas tiveram sua liberdade de exercício profissional tolhida, inclusive sob a ameaça ou a consumação do cárcere e das torturas físicas e psicológicas. Apesar das adversidades, a OAB manteve seu protagonismo e sua lealdade ao múnus público contramajoritário, pleiteando, de todas as maneiras exequíveis, a prevalência dos direitos humanos que caracteriza um regime de normalidade constitucional.
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1 Este artigo integra uma trilogia a respeito da natureza contramajoritária da advocacia. Seus componentes intitulam-se “A natureza contramajoritária da advocacia sob a perspectiva da teoria democrática”, “A natureza contramajoritária da advocacia através da história” e “A natureza contramajoritária da advocacia sob a perspectiva da ética profissional”. Cada qual enfoca uma abordagem do mesmo fenômeno, respectivamente: teórico-doutrinária, histórica e ético-normativa. Recomenda-se que sejam lidos em conjunto para uma mais ampla visão da temática.
2 BERTIN, Claude. “O Processo de Luís XVI”. Introdução. Otto Pierre Editores: São Paulo.
3 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. “Advogados, constituições e como são feitos os julgamentos sem esperança”.
4 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. A crise da advocacia no Brasil – diagnósticos e perspectivas. 3ª ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1999. (p. 24)
5 Ibidem, p. 137.
6 BERTIN, Op. Cit., p. 23.
7 Apud BERTIN, p. 31.
8 Apud BERTIN, p. 38.
9 Apud BERTIN, p. 50.
10 Apud BERTIN, p. 44.
11 Apud BERTIN, p. 84.
12 Apud BERTIN, p. 38.
13 Tronchet escreve à Assembleia, no ato de aceitação da defesa do ex-monarca: “Dedico-me ao dever que a humanidade me impõe. Como homem, não posso recusar o meu auxílio a outro homem sobre a cabeça do qual está suspensa a arma da justiça”.
14 BERTIN, p. 89.
15 Apud BERTIN, p. 91.
16 Apud BERTIN, p. 95.
17 Apud BERTIN, p. 111.
18 Consta do veredito do Presidente do Tribunal, Verginaud: “Declaro pois em nome da Convenção nacional, que a pena que esta pronuncia contra Luís Capeto é a morte”. Apud BERTIN, p. 122.
19 Apud BERTIN, p. 100.
20 APPROBATO MACHADO, Op. Cit.
21 BARBOSA, Rui. O dever do advogado: carta a Evaristo de Morais. 3 ed. rev. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2002. (p. 19)
22 GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 4: Criação, primeiros percursos e desafios (1930-1945). Brasília: OAB Ed., 2003. (p. 82, p. 84)
23 LINS E SILVA, Evandro apud GUIMARÃES; FERREIRA, Op. Cit., p. 88.
24 GUIMARÃES; FERREIRA, p. 89.
25 Ibidem, p. 104.
26 MOTTA, Marly Silva da. História da Ordem dos Advogados do Brasil, v. 5: Da redemocratização ao Estado democrático de direito (1946-1988). Rio de Janeiro: OAB, 2006. (p. 113)
27 Ibidem, p. 116.
28 Ibidem, p. 125.
27 Ibidem, pp. 120-121.
30 Prefácio ao livro “Brasil nunca mais”. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
31 MOTTA, Op. Cit., p. 140.