Sobejantes os argumentos teóricos e históricos, sobressaem também argumentos de índole ético-jurídico-normativa relativos às diretrizes impostas ao agir da advocacia. A natureza contramajoritária de defesa, muitas vezes confirmada na história, confluiu para a criação de uma consciência ética comum à advocacia, de que fazem parte os imperativos de valentia indômita e defesa incondicional dos direitos franqueados pelo Estado democrático, dos direitos das minorias, dos oprimidos e dos desvalidos. Por toda parte onde haja pressupostos e garantias para seu exercício, a advocacia é regida por padrões éticos que sublinham esses valores, de um modo ou de outro, no âmbito de uma moral profissional ou de uma legislação voltada à classe. Em linhas gerais, essa ética republicana compele o advogado ou a advogada a dedicar-se à causa sem temer a antipatia que ela gera, a adversidade da situação ou a opinião pública. Oportuna é a célebre frase de Sobral Pinto: “a advocacia não é profissão para covardes”.
Diplomas constitucionais, legais e infralegais se encarregam de fixar a advocacia em uma posição essencialmente contramajoritária, em função de portar a dimensão de ser indispensável à administração da Justiça. Nesse tom dispõe o direito constitucional brasileiro: “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Tão indispensável é a advocacia para a ordem pública que a “Constituição Cidadã” de 1988 lhe dedicou uma seção especial (seção III – Da Advocacia) dentro do capítulo das “Funções Essenciais à Justiça” (Capítulo IV). Há uma série de outras referências à advocacia dispersas pelo texto constitucional.2 A essencialidade da advocacia para o direito de defesa está consagrada no art. 5º, sendo garantia fundamental do cidadão o direito inalienável de, ao ser submetido a prisão, falar diretamente com seu advogado, direito consectário da garantia de ampla defesa: “LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Grande evidência do protagonismo concedido pela Constituição em prol da advocacia na promoção do Estado democrático de direito é a possibilidade de propor ações do controle concentrado de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação declaratória de constitucionalidade, arguição por descumprimento de preceito fundamental) concedida ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 103, VII). Com isso, o órgão máximo de representação da advocacia é positivamente reconhecido como um agente central para a defesa da ordem constitucional e dos direitos fundamentais.
Tal “ideologia democrática jusgarantista” se espraiou pela legislação que regulamenta os princípios que dão conformidade ao “espírito constitucional” de um Estado democrático de direito. As leis e resoluções sublegais que regem a advocacia, logo, não ficaram imunes a essa influência; muito pelo contrário, detectamos a prevalência iterativa de uma visão contramajoritária no Estatuto da Advocacia e da OAB (EAOAB, lei 8.906/94) e no Código de Ética e Disciplina da OAB (CED, Resolução 02/15). Dentre os preceitos que indicam essa tendência, vale citar:
a) Indispensabilidade da advocacia para a administração da Justiça no Estado democrático de direito. Em cumprimento ao disposto no art. 133 da Constituição, o EAOAB preceitua: “Art. 2º: O advogado é indispensável à administração da justiça. § 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social. § 2º No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público. § 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei”.
Esse item reúne as características essenciais da advocacia: indispensabilidade, inviolabilidade, função social e independência. Um dos artigos inaugurais do Estatuto, ratifica os princípios constitucionais da indispensabilidade e da inviolabilidade da advocacia, incorporando elementos idênticos à redação constitucional. Coloca em evidência o encargo, a função pública da advocacia. O advogado realiza função social quando concretiza a aplicação do direito, obtém a prestação jurisdicional e participa da construção da justiça social.3 Cabe frisar que a indispensabilidade é uma garantia da parte, e não do profissional. Em virtude do princípio da igualdade, que se materializa no direito processual através do princípio da paridade de armas, é preciso que a parte tenha seus interesses representados por um profissional tecnicamente capacitado, munido de conhecimento jurídico e experiência forense. Tendo em vista essa perspectiva, “(…) a atividade judicial do advogado não visa, apenas ou primariamente, à satisfação de interesses privados, mas à realização da justiça, finalidade última de todo processo litigioso”. 4
Decorre desse princípio a subordinação funcional da advocacia à disciplina da classe, que jaz vinculada à observância de princípios éticos profissionais de “zelo, probidade, dedicação e espírito cívico”. Acima do interesse privado está o serviço à Justiça, e o escopo de realização da Justiça é, por seu turno, um interesse social. A advocacia detém a capacidade postulatória desencadeadora da atuação jurisdicional (nemo iudex sine actore – reza o famoso brocardo romano), de tal sorte que funciona como intermediária entre a parte e o juiz e, no limite, entre o cidadão e o Estado, ao emprestar ao cliente o conhecimento necessário para defender-se e triunfar na demanda. Nesse sentido manifestou-se de modo lapidar o Eminente Ministro Celso de Mello: “O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão”. 5
b) Função político-institucional da Ordem dos Advogados do Brasil, em razão do múnus público exercido pela advocacia. Considerada sua indispensabilidade para a ordem jurídica, a corporação oficial de representação da advocacia – a OAB – é revestida de função político-institucional, na medida em que cuida de disciplinar e fiscalizar uma atividade incontestavelmente pública: a advocacia. Acerca dos fins da organização, disciplina o EAOAB: “Art. 44: A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade: I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas; II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil. § 1º A OAB não mantém com órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico”.
Daí se depreende a finalidade pública e institucional da Ordem na esfera política. Concerne à OAB combater o desvirtuamento dos parâmetros do Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da justiça social, de modo a contribuir para a melhoria das instituições. Por isso se prevê em seu favor total desvinculação da política partidária e da estrutura administrativa do Estado.6 A independência é a própria essência da OAB;7 é condição de possibilidade de seu trabalho em defesa da Constituição, pelo qual a Entidade pode mobilizar a própria advocacia e a sociedade civil na vigilância e na denúncia de violações dos princípios constitucionais, ajuizando, inclusive, ações constitucionais diretamente propostas ao STF, hipótese em que exercerá com mais vigor e amplitude sua função contramajoritária.
c) Independência absoluta da advocacia em suas atribuições de defensora do cidadão. Sendo a OAB independente e desvinculada de subordinação, com a mesma razão o são a advogada ou o advogado que atuam em determinada causa. Nem a típica hierarquia da relação de emprego nem o liame das relações de prestação de serviço são suficientes para proscrever essa independência. Conforme o EAOAB: “Art. 18. A relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia”. De mesma inclinação é o CED: “Art. 4º: O advogado, ainda que vinculado ao cliente ou constituinte, mediante relação empregatícia ou por contrato de prestação permanente de serviços, ou como integrante de departamento jurídico, ou de órgão de assessoria jurídica, público ou privado, deve zelar pela sua liberdade e independência”.
A orientação técnica da causa é de inteira competência do advogado ou da advogada a que ela foi confiada. Mesmo na condição de empregado, continua sujeito aos ditames éticos que regem a profissão, exigindo-se-lhe a recusa às ordens que contrariem os preceitos éticos estampados no EAOAB e no CED. Negligenciado o dever de independência, a prática da função contramajoritária que cabe à advocacia restará de todo impossível.
d) Previsão de prerrogativas profissionais que convergem para a promoção dos direitos de cidadania. O Estado democrático invoca uma série de direitos, exercitáveis na condição de prerrogativas profissionais, que são, em última análise, direitos de todos os cidadãos envolvidos na prestação da Justiça. Para assegurar a igualdade processual, o Estatuto adverte: “Art. 6º: Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho”. Qualquer desatenção à paridade de armas pode comprometer enormemente os direitos constitucionais do cidadão.
O mesmo diploma legal prevê, ainda, uma série de prerrogativas profissionais relativas à natureza contramajoritária da advocacia, dentre as quais podemos sublinhar: “Art. 7º: São direitos do advogado: (…) X – usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas; XI – reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; XII – falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo; (…) § 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato8 puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”.
As prerrogativas criam um muro de proteção da advocacia com relação à força potencialmente subjugadora do Poder Público. Por isso são um direito exclusivo e indispensável, um direito-dever plasmado no interesse social.9 A inviolabilidade de matriz constitucional, reforçada pela legislação, confere à advocacia imunidade profissional por manifestações, palavras e atos que possam ser ofensivos a autoridades públicas ou quaisquer pessoas. Nos dizeres percucientes de José Roberto Batochio, ex-Presidente do Conselho Federal da OAB: “… a natureza eminentemente conflitiva da atividade do advogado frequentemente o coloca diante de situações que o obrigam a expender argumentos à primeira vista ofensivos, ou eventualmente adotar conduta insurgente”.10 A imunidade guarda coerência com o princípio da igualdade dos participantes na prestação jurisdicional; resguarda a liberdade de expressão, o sigilo profissional e os meios de trabalho.11 As prerrogativas que brotam da imunidade, nunca é demais ressaltar, não foram introduzidas em prol do interesse particular do cliente ou tampouco do seu patrono, antes a serviço do interesse público pressuposto pelo direito de defesa.
A liberdade de palavra da advocacia, por sua vez, é seu meio de atuação profissional por excelência. É por meio da palavra – escrita ou oral – que a advocacia contribui para o esclarecimento dos fatos e dos direitos e para a formação da convicção dos julgadores, sempre intervindo em prol dos interesses juridicamente legítimos das partes. Isso pode ser feito via sustentação oral, intervenções sumárias, reclamações contra inobservância de preceito de lei, e uso do direito de acesso à justiça e de peticionar nos autos. Isenta de liberdade para usar a palavra conforme sua consciência, a atuação contramajoritária da advocacia em defesa dos direitos torna-se impraticável.
e) Sistematização de um Código de Ética para a advocacia, o qual impõe deveres éticos de conduta à classe. O Estatuto prevê que o disciplinamento ético da advocacia será aprofundado por um Código de Ética e Disciplina a ser elaborado pela própria categoria: “Art. 33. O advogado obriga-se a cumprir rigorosamente os deveres consignados no Código de Ética e Disciplina. Parágrafo único. O Código de Ética e Disciplina regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional e, ainda, a publicidade, a recusa do patrocínio, o dever de assistência jurídica, o dever geral de urbanidade e os respectivos procedimentos disciplinares”. Sem prejuízo dessa delegação, o EAOAB prescreve os cânones norteadores dessa empreitada, reforçando os imperativos de dignidade e independência: “Art. 31: O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia. § 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância. § 2º Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”.
Ética, cuja origem etimológica remonta ao grego ethos, significa, nessa pontual acepção, costume. Normas éticas são destarte diretrizes de conduta que obrigatoriamente deverão presidir a postura do profissional. Os deveres insculpidos no CED não são meramente normas de bom comportamento: conquanto tenham evidente conteúdo ético, perfazem-se como normas jurídicas dotadas de obrigatoriedade e cujo descumprimento acarreta sanções jurídicas disciplinares. Toda a vivência da advocacia está atravessada por rígidos padrões éticos, por “lugares-comuns objetivamente captados nas condutas qualificadas como corretas, adequadas ou exemplares”.12 O Preâmbulo do CED antevê uma síntese dos mais elementares imperativos éticos da conduta da advocacia. É uma sinopse principiológica do próprio Código, de caráter propedêutico e pedagógico com relação ao texto vindouro e à conduta ética prescrita, e que exorta a classe ao seu cumprimento.13 Vale transcrevê-lo ipsis litteris:
O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ao instituir o Código de Ética e Disciplina, norteou-se por princípios que formam a consciência profissional do advogado e representam imperativos de sua conduta, os quais se traduzem nos seguintes mandamentos: lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que o ordenamento jurídico seja interpretado com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comum; ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses; comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve a finalidade social do seu trabalho; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade e a correção dos profissionais que honram e engrandecem a sua classe.14
f) Estabelecimento de deveres jurídicos que regulam a conduta da advocacia. Os deveres jurídicos prenunciados pelo Preâmbulo são detalhados ao longo do CED. Os seguintes dizem respeito diretamente à natureza contramajoritária da advocacia: “Art. 2º: O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes. Parágrafo único. São deveres do advogado: I – preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo caráter de essencialidade e indispensabilidade da advocacia; II – atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé; (…) V – contribuir para o aprimoramento das instituições, do Direito e das leis; (…) IX – pugnar pela solução dos problemas da cidadania e pela efetivação dos direitos individuais, coletivos e difusos; X – adotar conduta consentânea com o papel de elemento indispensável à administração da Justiça; (…).”
O CED estatui deveres que o profissional tem consigo mesmo, com seus colegas de profissão, sua corporação e a comunidade em geral. O principal dever pessoal do advogado ou da advogada é ter consciência de que sua profissão é muito mais do que um simples meio de subsistência, mas parte indispensável do sistema de Justiça, razão pela qual a Constituição atribui sobressaltada função pública à advocacia, bem como inviolável compromisso com a cidadania e com o ordenamento jurídico, acima de qualquer compromisso corporativo.15
g) Dever da advocacia de lutar pela promoção da igualdade. Entre os mais elevados mandamentos da advocacia está seu dever de pugnar pelo princípio constitucional da igualdade, princípio que o CED fez questão de enfatizar: “Art. 3º: O advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos”.
A promoção da igualdade é finalidade institucional de primeira grandeza atribuída à Ordem. Deixa-se aí subentender uma exata compreensão do Direito como “meio destinado a assegurar a isonomia jurídica e a igualdade social”.16 Esse artigo convida a advocacia a integrar a labuta pela concretização do Preâmbulo da Constituição.17 Se a igualdade é um elemento comum a toda concepção de justiça, lutar pela Justiça – missão vital da advocacia – necessariamente passa pela luta por igualdade. Impende aos advogados a desafiadora tarefa de concorrer para o pleno alcance da justiça social, rumo à redução das desigualdades sociais e regionais, como decreta o art. 3º da Constituição. 18
h) Estabelecimento de padrões éticos para a defesa criminal. A defesa criminal consiste, em certo aspecto, em situação excepcional dentro da advocacia. O Código de Ética com razão preceitua: “Art. 23: É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado. Parágrafo único. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais”.
No que tange aos processos criminais, recomenda-se que o advogado não prejulgue o cliente nem projete juízos moralistas sobre o suposto crime cometido. Não se advoga pelo crime, e sim pela observância dos direitos e garantias fundamentais do infrator, o que também significa o respeito à efetividade da ordem jurídica. Quando atua em juízo criminal, a advocacia nem de longe é conivente com os erros que possam ter sido efetuados pelo acusado, pois age com o escopo de evitar o desmantelamento do sistema de direitos e garantias processuais, sem o qual não há fidelidade ao Estado democrático de direito. A questão foi posta com a maior acurácia concebível por Rui Barbosa, em celebrada e irretocável carta endereçada a Evaristo de Morais. A isto pouco se tem a acrescentar:
Para aceitar a causa, não é preciso que o advogado creia na inocência do acusado. Basta que ele se proponha fazer com que este seja julgado segundo o devido processo legal e goze de todo o amparo a que a sua liberdade faça jus. E, mesmo sem a convicção de sua inocência, não estará impedido de postular-lhe a absolvição (…). A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais. Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercido assim, terá foros de meritório, e se recomendará como útil à sociedade.19
i) Destaque à função promotora dos direitos humanos outorgada à advocacia e à OAB. Logo no inciso I do supracitado art. 44, que trata das finalidades gerais da OAB, lê-se que compete à Entidade: “I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”. A advocacia encontra-se, pois, entre as instituições incumbidas de zelar pela primazia dos direitos humanos do Estado democrático de direito, sempre pronta a defender o cidadão diante do poder e da arbitrariedade.
Em resumo, a advocacia atua de forma contramajoritária na medida em que defende em juízo os direitos de seus constituintes contra as violações e acusações consumadas pelo Poder Público. Dessa perspectiva, pode-se dizer que o cidadão ou as minorias, contanto que representados em juízo, encontram na figura da advogada ou do advogado um suporte diante da irascível arbitrariedade que acomete a opinião pública e o julgamento popular. A histórica luta da advocacia pelos direitos incorporou-se em códigos que estabelecem, com o caráter cogente de obrigatoriedade jurídica, a eticidade das condutas que deverão ser preservadas e das que deverão ser proscritas pelos profissionais da classe. As normas fundamentais da profissão, no Brasil, encontram guarida na Constituição, no EAOAB (lei 8906/94) e no CED (Resolução 02/15). Dispersas por esses diplomas, podem ser realçadas as seguintes diretrizes que propugnam pela defesa da democracia, da Constituição e do Estado democrático de direito: a) indispensabilidade da advocacia para a administração da Justiça no Estado democrático de direito; b) função político-institucional da Ordem dos Advogados do Brasil, em razão do múnus público exercido pela advocacia; c) independência absoluta da advocacia em suas atribuições de defensora do cidadão; d) previsão de prerrogativas profissionais que convergem para a promoção dos direitos de cidadania; e) sistematização de um Código de Ética para a advocacia, o qual impõe deveres éticos de conduta à classe; f) estabelecimento de deveres jurídicos que regulam a conduta da advocacia; g) dever da advocacia de lutar pela promoção da igualdade; h) estabelecimento de padrões éticos para a defesa criminal; e i) destaque à função promotora dos direitos humanos outorgada à advocacia e à OAB. Todos esses princípios jurídicos de intenso conteúdo ético apontam para o elemento contramajoritário inerente à própria razão de existir da advocacia.
____________
1 Este artigo integra uma trilogia a respeito da natureza contramajoritária da advocacia. Seus componentes intitulam-se “A natureza contramajoritária da advocacia sob a perspectiva da teoria democrática”, “A natureza contramajoritária da advocacia através da história” e “A natureza contramajoritária da advocacia sob a perspectiva da ética profissional”. Cada qual enfoca uma abordagem do mesmo fenômeno, respectivamente: doutrinária e teórica; histórica; e ético-normativa. Recomenda-se que sejam lidos em conjunto para uma mais ampla visão da temática.
2 Sua essencialidade para o funcionamento da jurisdição se evidencia também no fato de que um percentual das vagas dos Tribunais será reservado a membros da advocacia (juntamente a membros do Ministério Público) dotados de notório saber jurídico e reputação ilibada (um quinto dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais dos Estados, Distrito Federal e Territórios – art. 94 da CF; do Tribunal Superior do Trabalho – art. 111-A, I da CF; dos Tribunais Regionais do Trabalho – art. 115, I da CF; do Superior Tribunal Militar – art. 123, I; e dois dentre sete membros do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais Regionais Eleitorais – art. 119, II e §1º, III da CF; e um terço dos componentes do Superior Tribunal de Justiça – art. 104, II). A razão desses dispositivos é a expectativa de que a sensibilidade e a experiência adquiridas pelos advogados na defesa dos jurisdicionados venham a contribuir para a melhora da qualidade da prestação jurisdicional, porque a advocacia conhece de perto os dramas do cidadão e, assim, desenvolve por eles uma empatia que só tem a acrescentar justiça à sentença.
3 LOBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
4 Ibidem, p. 44
5 Min. Celso de Mello, na medida cautelar em Mandado de Segurança 30.906-DF, em 05.10.2011.
6 A propósito da discussão sobre a peculiar natureza jurídica da OAB, remeto para minha publicação “As instituições sui generis da República”. Acesso em: 16/02/2017.
7 RAMOS, Gisela Gondin. Estatuto da advocacia: comentários e jurisprudência selecionada. 6ª ed. rev. e amp. Belo Horizonte: Fórum, 2013. (p. 504)
8 O trecho “desacato” foi declarado inconstitucional na ADIN 1.127-8.
9 LOBO, Op. Cit., p. 65.
10 Apud LOBO, p. 70.
11 RAMOS, Op. Cit., pp. 45-48.
12 LOBO, p. 195.
13 MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Comentários ao código de ética e disciplina da OAB: análise do Código 2015, pelo relator do anteprojeto e da sistematização final do texto. Rio de Janeiro: Forense, 2016. (p. 29)
14 RESOLUÇÃO N. 02/2015 (DOU, S.1, 04.11.2015, p. 77) “Aprova o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. (CED)”. (grifo nosso).
15 MEDINA, Op. Cit., p. 35, p. 41.
16 Ibidem, p. 46.
17 Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
18 Art. 3º da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
19 BARBOSA, Op. Cit., p. 36.