A decisão do Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388/RR é representativa de uma das principais transformações do Direito Constitucional ao longo do século XX. Ao lado da atribuição de força vinculante às constituições e à expansão da jurisdição constitucional, colocou-se em prática uma nova forma de interpretar a Carta Magna[1]. Neste paradigma, o juiz supera o papel de mero revelador da solução contida na norma jurídica para participar ativamente do processo de criação do Direito.
O Supremo Tribunal Federal atuou como legislador positivo, efetivamente inovando na ordem jurídica ao julgar a ação ajuizada contra a portaria que instituiu a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ao decidir sobre a lisura do processo demarcatório da reserva, que se estende por mais de 1,5 milhão de hectares no estado de Roraima, o tribunal estabeleceu as condições para a demarcação e ocupação das terras indígenas[2].
Impugnando o modelo contínuo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a ação popular requeria a suspensão liminar dos efeitos da Portaria MJ 534/05 e, no mérito, a declaração de nulidade do ato do Poder Executivo. De acordo com a inicial, o processo de demarcação não respeitara as normas constantes dos decretos 22/91 e 1.775/96, que dispõem “sobre o processo administrativo de demarcação das terras indígenas, e dá outras providências”. Alegou, por exemplo, que não foram ouvidos todos os atingidos diretamente pela controvérsia e que o laudo antropológico seria parcial por ser subscrito por apenas um profissional.
Suscitou que a demarcação acarretaria prejuízos comerciais, econômicos e sociais ao estado de Roraima. Ao privilegiar a tutela do indígena em face à livre iniciativa, o ato prejudicou o interesse de grupos “não índios” que colonizaram a região e tornaram-na produtiva. Por fim, acrescentou que a demarcação comprometeria a segurança e a soberania nacionais e causaria um desequilíbrio federativo, uma vez que a transferência da área ao domínio da União mutilaria parte significativa do estado.
Na contestação, a Advocacia-Geral da União rechaçou a ocorrência de vícios no processo demarcatório e discorreu sobre da ocupação indígena na região. Com base no artigo 231 e parágrafos da Constituição Federal de 1988, que garantem aos indígenas “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, argumentou-se pela inocorrência de lesão ao patrimônio público, pela ausência de comprovação dos vícios arguidos na inicial e pela normalidade na diferença entre as áreas da Portaria 820/98, que declarou como de posse permanente indígena a Raposa Serra do Sol, e da Portaria 534, que efetivamente delimitou a reserva indígena.
Na opinião do parquet, inexistiram irregularidades a macular o processo administrativo, que fora subsidiado por um estudo antropológico subscrito por profissional devidamente habilitado e teria respeitado as garantias do contraditório e da ampla defesa. Restaram igualmente afastadas ambas as alegações de risco à soberania do Brasil e à autonomia do Roraima — a primeira, na medida em que “se existente não possui imediata aplicação com o modelo de respeito ao direito de posse dos indígenas”, e a segunda, porque restou “elidida pelo caráter originário e anterior do direito dos indígenas”. Para a Procuradoria-Geral da República, a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol atendeu ao comando constitucional de preservação da tradição e da cultura das comunidades indígenas.
Em que pese a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal tenha julgado a ação parcialmente procedente, foi declarada a constitucionalidade da demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Confirmou-se a regularidade do processo administrativo, que observara, sim, as regras constantes do Decreto 1.775/96, a garantia constitucional à ampla defesa e ao contraditório e a exigência de laudo elaborado por profissional de reconhecia qualificação técnica e subsidiado pelas informações legalmente exigidas. O acórdão afastou o risco à soberania e à segurança nacional, defendeu o protagonismo da União dentro das terras indígenas e reafirmou a competência do Poder Executivo Federal para a demarcação das reservas.
Saíram vencidos no julgamento o ministro Joaquim Barbosa, que julgava a ação por inteira improcedente, e o ministro Marco Aurélio, que a julgava por inteira procedente. A parcial procedência da petição deveu-se à definição das 19 condições para a delimitação das terras indígenas pelo Poder Executivo no cumprimento do artigo 231 da Lei Fundamental — na esteira do voto do ministro Menezes Direito.
As 19 condições buscam conciliar os interesses indígenas, a defesa nacional e a preservação do meio ambiente[3]. Ao lado das que são mera repetição ou interpretação do texto constitucional ou da regulamentação infraconstitucional, consistem em efetiva criação normativa as ressalvas J, L, M, R e T[4], que dispõem acerca do ingresso, do trânsito e da permanência dos não índios na área, bem como da participação dos entes federados no procedimento demarcatório.
O tribunal, ao fixar as condições para a demarcação de terras indígenas, lançou as bases para o reconhecimento aos povos indígenas das terras tradicionalmente ocupadas. De acordo com o voto-vista do ministro Menezes Direito, a quem coube suscitar a fixação das 19 condicionantes, “a decisão adotada neste caso certamente vai consolidar o entendimento da Suprema Corte sobre o procedimento demarcatório com repercussão também para o futuro. Daí a necessidade do dispositivo explicitar a natureza do usufruto constitucional e seu alcance”.
A decisão na Pet 3.388 é uma das mais importantes na história do Supremo Tribunal Federal. Segundo o presidente à época do caso Raposa Serra do Sol, ministro Gilmar Mendes, “os múltiplos e diversificados fatores sociais envolvidos numa imbricada teia de questões antropológicas, políticas e federativas faz desse julgamento um marco em nossa jurisprudência constitucional”. Além da importância para a proteção dos direitos indígenas, o precedente é significativo para a análise do papel assumido pelo Supremo Tribunal Federal no ordenamento jurídico brasileiro.
Como será visto adiante, ao decidir sobre a lisura da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol e estabelecer as condições de demarcação e ocupação das terras, o Supremo acabou por acrescer às suas vastas competências constitucionais uma nova: a criação do Direito. Fenômeno semelhante ocorreu na consolidação do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha na orquestre de poderes, como descrito por Ingeborg Maus: “Sobretudo no início de sua jurisprudência o TFC ocupou-se, nos conflitos que lhe foram apresentados, com a definição de seus próprios limites. Questões de pouca importância relativa, como a sincronização dos períodos de legislatura na construção do Estado alemão-ocidental, motivaram o Tribunal a discutir sua própria competência e métodos de interpretação constitucional (…)”[5].
Quando enunciou o regime constitucional do usufruto das terras indígenas, em que pese tenha posteriormente decidido no bojo de embargos declaratórios que os critérios seriam aplicáveis somente ao caso da Reserva Raposa Serra do Sol[6], não paira dúvida de que o Supremo Tribunal Federal criou normatividade ao instituir um regime jurídico inédito no ordenamento brasileiro. Cuida-se, portanto, de uma sentença que supriu as omissões do legislador em atenção à efetividade dos princípios. Nessas situações, ensina Gustavo Zagrebelsky, “a Corte Constitucional intervém declarando inconstitucional a disposição na parte na qual não prevê algo, pretendendo que este conteúdo normativo ulterior seja introduzido no ordenamento, não obstante a presença de um texto que — mesmo depois da sentença da corte — não é de per si idôneo a exprimi-lo”[7].
As sentenças aditivas, como são designadas decisões judiciais que criam normatividade, são reflexo da superação do entendimento do papel dos tribunais constitucionais como simples legislador negativo. Desde o Barão de Montesquieu, com a formulação clássica do princípio da separação dos Poderes, atribuía-se ao Poder Judiciário o papel de aplicar mecanicamente a legislação, como se fosse sua “boca”[8]. Para tanto, pressupunha-se que o legislador criaria leis aptas a regularem todas as situações possíveis e imagináveis da vida em sociedade.
Hans Kelsen, a quem coube elaborar a ideia clássica do tribunal constitucional como o guardião da Constituição, enxergava que, na prática da jurisdição constitucional, “a livre criação que caracteriza a legislação está aqui quase completamente ausente”[9]. Na sua compreensão, por mais que o Poder Judiciário criasse Direito em alguma medida — por menor que fosse —, o exercício judicante seria absolutamente condicionada ao texto constitucional por envolver a aplicação do conteúdo das suas normas. O Poder Legislativo, ao contrário, estaria submetido tão somente aos procedimentos ali previstos e, excepcionalmente, aos princípios gerais.
Com a consagração do pós-positivismo e a superação do positivismo clássico, transição essa da qual são símbolos a atribuição de força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e uma nova forma de interpretação constitucional, o Poder Judiciário ocupou uma posição inédita no concerto institucional. Por meio das cláusulas gerais, cuja redação por vezes leva a conflitos a serem resolvidos mediante ponderação, o tribunal avança na criação e no aperfeiçoamento da ordem jurídica.
Assim o fez na Pet 3.388/RR. Instado a aferir a ocorrência de vícios no procedimento demarcatório da reserva, o Supremo analisou para rechaçar a suposta incompatibilidade entre questão indígena e desenvolvimento nacional, conciliando ambos os princípios em face dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Assim, determinou que o desenvolvimento que se fizer na ausência ou em prejuízo aos índios desrespeita o objetivo do desenvolvimento “tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena”.
O Poder Judiciário exercerá legitimamente a função atípica de Poder Legislativo quando reconduz sua solução inovadora às balizas presentes na Constituição. Quando não o faz, seja na ausência de princípios que autorizem tal decisão, na existência de princípios que contrariem a inovação promovida judicialmente ou na contramão do direito positivado pelo legislador, cuida-se de ato violador à separação e à harmonia dos Poderes.
No processo envolvendo a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo garantiu a demarcação do território indígena mediante criação legislativa devidamente fundada no estatuto dos indígenas e nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Ao reconduzir os 19 parâmetros ao texto constitucional, o Supremo assegurou à sua decisão legitimidade e racionalidade, não obstante a lógica da separação de Poderes.
Intérprete privilegiado do Direito, o julgador possui o poder-dever de extrair do enunciado normativo seu sentido, alcance e extensão. Contudo, extravasa a função judicante quando passa à condição de criador da norma jurídica, especialmente se o Parlamento já legislou e, muito particularmente, se extrai do texto um comando que contraria o significado expresso da literalidade. Equilíbrio, ponderação, prudência, são qualidades que também devem povoar as decisões judiciais, de tal modo a garantir a prevalência da harmonia e separação dos Poderes.
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[1] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, abr. 2005. p. 09.