Muito tem se dito estes dias sobre a questão da decisão tomada conjuntamente entre o Prefeito e a Câmara de Vereadores da cidade de Ariquemes, neste estado de Rondônia, com relação a retirada de página dos livros didáticos enviado pelo Ministério da Educação para o município, posto que supostamente algumas páginas teriam a propagação do discurso de “ideologia de gênero”.
Não vamos abordar aqui a questão pelo só fato de que retirar páginas do livro didático, danificando estes materiais públicos, ser crime de dano ao patrimônio público, mas sim vamos um pouco mais a fundo com a presente questão, abordando o que consta dos livros e a legalidade ou não da decisão tomada naquele município.
Primeiramente, há que se descrever qual é o conteúdo presente nos livros que geraria tal comoção. Os livros escolares quando abordam o tema família não o fazem como sendo algo formado somente por pai, mãe e filhos, como os tradicionalistas tanto querem impor, mas descrevem que a família é formada por vários tipos de arranjos pessoais, não promovendo uma interpretação reducionista, mas sim ampliativa do conceito do que é família. A título de ilustração desta ideia, os livros mostram fotos de casais formandos por homens e mulheres, somente por homens, somente por mulheres, bem como mostra fotos de outros tipos de família, como a família com mãe e filhos ou pai e filhos, entre outros. [1]
Tais imagens é que estão sendo abominadas e gerando esta tamanha discussão em Ariquemes, já que para os vereadores e o prefeito isso seria uma abordagem de “ideologia de gênero” e que isso não pode ser mostrado em livros escolares. Mas há um grande erro conceitual destes agentes públicos ao realizarem esta afirmativa, já que a ideologia de gênero é ideia de que as questões ligadas a formação das identidades de gêneros das pessoas não está ligada ao sexo biológico que estas pessoas possuem e sim a uma construção social, cultura e psicológica do ser humano. Ou seja, no presente caso, a discussão não parte para este lado.
O que se discute efetivamente neste caso em Ariquemes é a não aceitação por parte dos tradicionalistas, ligados ou não a certos grupos religiosos das mais diversas denominações, que a família não é formada mais em sua grande maioria pela tradicional visão da união do homem e uma mulher e seus filhos. Os livros trazem que a família é formada por uma série de arranjos familiares, onde o que importa na sua formação são os laços afetivos que os une. Portanto, não poderia os livros representarem a família da forma tradicional que descrevemos, já que a conformação das famílias brasileiras são diferentes do tradicional.
Assim, a representação para a criança do conceito de família não pode se eivar de reduções que não estão presentes na própria representação social da família brasileira, o que geraria a construção de uma errônea percepção do que seja a compreensão de família e a discriminação dos demais arranjos familiares que fugiriam a este conceito tradicional.
Isso não tem nenhuma relação com ideologia de gênero e sim uma questão de adequação do ensino aos parâmetros sociais vigentes no país, devendo o conceito de família que é ensinado nas escolas representar corretamente a realidade social em que vivemos, portanto necessária a representação de casais heterossexuais, casais homossexuais, famílias formadas por um progenitor e seus filhos, por meio multiparental e até a representação da família como uma representação unipessoal, já que esta é a conformação da família brasileira.
Assim, os agentes públicos querem retirar páginas de alguns livros didáticos por representar corretamente a conformação da família brasileira, para que seja ensinado nas escolas que a família é somente a representação de um casal heterossexual e de seus filhos, quando isso representa menos de 40% por cento do percentual de famílias brasileiras, de acordo com o Censo do IBGE de 2010. Se isso não é sequer a maioria e o ensino deve promover a inclusão do todo, sem a discriminação das partes, não pode o conteúdo escolar algo que seja distinto da realidade, ou seja, a família pode se dar por uma série de arranjos dos mais diversos advindos de laços formatados pelo amor.
Esta é a representação mais importante de se gerar no aluno, que o conceito de família é algo plural e integrativo, impedindo o fomento da discriminação daqueles que fogem a certos parâmetros tradicionais.
Um segundo ponto a chamar a atenção para questão, é que os agentes públicos ariquemenses com tal postura infringem a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132. Estas duas ações foram julgadas conjuntamente pelo STF em 2011, onde se descreveu a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, com a declaração de interpretação conforme a Constituição do art. 1723 do Código Civil e a realização de mutação constitucional para o art. 226 do seu próprio texto.
Assim, ficou reconhecido o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo no país, bem como foi descrito um novo conceito de família para o direito brasileiro, já que o STF reconheceu o conceito ampliado do que é família, tudo com base no princípio constitucional da igualdade e da dignidade, já que não é possível a realização de uma interpretação reducionista (com o intuito de restringir) para conceituar o que venha a ser família, posto que o ordenamento jurídico deve se adequar à realidade social vigente no país para a apresentação da interpretação da norma, sendo que o conceito reducionista acabaria por retirar da guarida do Estado mais da metade das famílias brasileiras, posto que estas são formadas pelos mais diversos arranjos sociais que não a da tradicional família formada por pai, mãe e filhos.
Esta interpretação realizado pelo STF teve como objetivo promover uma adequação do direito brasileiro aos princípios constitucionais vigentes e à realidade social, acabando com o preconceito realizado pela norma na conceituação da família por aquela visão tradicional, o que acabava por promover discriminação estatal do restante das famílias brasileiras.
A emenda do acórdão assim fala sobre o tema específico do conceito de família, senão vejamos:
TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.
Ou seja, o STF resolveu a questão do conceito de família e o fez com base nos princípios ditados pela própria norma constitucional, sem deixar de visitar uma série de princípios de direito de família, já que a forma que a norma se manifestava anteriormente importava em atuação discriminatória e injusta, o que contraria a dignidade da pessoa humana.
Então, esta declaração dada pelo STF, declarando o reconhecimento do casamento homossexual e alterando o conceito de família no ordenamento jurídico, foi realizada em controle concentrado de constitucionalidade, onde se descreveu qual é a forma correta que o Estado deve promover a atuação em face do conceito de família e ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Se foi realizada neste tipo de controle de constitucionalidade, imperioso que os agentes públicos na sua atuação, tanto administrativa como política, devam proceder na aplicação do contido da decisão do STF.
Esta declaração judicial do STF vincula o agente público na sua atuação, já que a decisão tem efeitos erga omnes e não houve nenhuma modulação temporal à sua aplicação, de forma que no caso de Ariquemes o prefeito e os vereadores devem cumprir o contido naquela declaração de inconstitucionalidade, para descrever a aplicação do conceito de família como um conceito pluralista e não reducionista.
Como estes agentes públicos não cumpriram tais preceitos contidos na ADI nº 4277, as suas decisões estão eivadas de nulidade pelo descumprimento do contido em tal decisão judicial, de forma que qualquer decisão administrativa-política neste sentido importará em nulidade e nas suas responsabilizações em decorrências de suas consequências jurídicas, já que para o Estado brasileiro, como um todo, família é um conceito pluralista e que abrange os mais diversos arranjos familiares possível, tudo em decorrência de uma aplicação do princípio da afetividade e da liberdade das relações familiares.
Walter Lemos é advogado. Doutorando em Direito pela UNESA/RJ. Mestre em História pela PUC/RS e Mestre em D. Internacional pela UAA/PY. Especialista em Direito Processual Civil pela FARO – Faculdade de Rondônia e em D. Processual Penal pela ULBRA/RS. Professor de Hermenêutica Jurídica e D. Internacional da FARO e da FCR – Faculdade Católica de Rondônia. Membro do Instituto de Direito Processual de Rondônia – IDPR. Membro da ABDI – Academia Brasileira de Direito Internacional. Ex-Secretário-Geral Adjunto e Ex-Ouvidor Geral da OAB/RO. Presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/RO.