Eu me propus escrever sobre um tema que, acredito, tem provocado intenso e interminável debate no mundo jurídico e no universo da vida virtual. Queria dissertar especificamente sobre a importância da paridade de armas entre acusação e defesa. Rebelde ao querer do voluntarioso articulista, entretanto, o meu pensamento teimava em pousar na minha infância em Propriá (SE). Recusava-se a escrever sobre o valor jurídico do power point como fundamento acusatório, ou mesmo sobre a imprescindibilidade da prova como requisito de validade da sentença penal. Não queria, sequer, escrever a perigosa transformação do “falar nos autos” em “vazar para os outros”. Não fosse advogado, teria condenado minha própria mente pelo “crime de pensamento disperso”, tão comum nas salas de aula.
Concedi, então, um habeas corpus ao meu livre pensar. E ele me conduziu direto a memória propriaense, quando o meu pai chegava a nossa casa, depois do trabalho em Aracaju, portando as revistas O Cruzeiro e Manchete. Logo eu as folheava em busca das páginas que atraiam a minha atenção de pré-adolescente. A primeira, a charge do Amigo da Onça, o irônico, falso, satírico e crítico personagem criado por Péricles de Andrade Maranhão. A segunda, na Manchete, a coluna Criança diz cada uma, criada pelo dramaturgo, médico e escritor Pedro Bloch, em que narrava casos engraçados e surpreendentes de crianças, quase sempre enviados pelas mães corujas.
Eureka! Disse-me a mente em assumido plágio ao grego Arquimedes. Mostrava-me, de supetão, que não cometera nenhum crime ao lembrar-me da inspiradora Propriá. A mente era inocente do crime que falsamente a acusei. Em verdade, ela queria que eu explicasse o tema sob a ótica de meu sobrinho e afilhado Davi, em versão contada por sua mãe Rosa Helena, no bom e velho estilo Criança diz cada uma. O fato ocorrera quando a minha irmã, mãe de quatro filhos, voltando de uma viagem ao Chile, não encontrou na geladeira um dos ovos de chocolate que presentearia na Páscoa. Imediatamente chamou o filho caçula e personagem-autor na narrativa:
“— Davi! – gritou Rosa em tom acusador.
— Já vou, mãe – disse Davi, defensivamente, correndo ao encontro da voz.
— Por que você pegou um dos ovos da geladeira? – seguiu a mãe na sua lógica acusadora.
— Não foi eu mãe – replicou, calmamente, o pequeno.
— Claro que foi você! – repetiu, braba, a mãe. — Os seus irmãos não fariam isso…
— Puxa, mãe! – argumentou, ofendido. — A senhora parece até o Ministério Público! Tem convicção, mas não tem prova.
— !!! – calou-se a mãe, advogada, diante do certeiro argumento.”
A reação do Davi acusado diante da golias acusação materna é daquelas instintivas, sem explicação lógica e que brota em nossa mente como verdade absoluta. O filósofo grego Plotino, fundador do neoplatonismo, a descreve como decorrente de um modelo prévio para todas as coisas, razão porque ensinou: “Procurai sempre conjugar o divino que há em vós com o divino que há no universo”. Santo Agostinho confessaria mais tarde que, na verdade, estas ideias decorrem do que recebemos da mente de Deus. Carl Jung a resumiu como arquétipo, uma espécie de “imagem primordial” que se origina de uma constante repetição de uma mesma experiência, durante muitas gerações, guardadas no inconsciente coletivo.
De Aracaju a Curitiba, ou em qualquer lugar do Brasil ou do planeta, “até as pedras sabem” que nenhuma pessoa, instituição ou aparelho estatal foram aquinhoados com o “dom da verdade” e o “poder da infalibilidade”. Fincada em nosso inconsciente coletivo, está a certeza já vivenciada de que convicções, moralismos e fundamentalismos são palavras que simbolizam injustiças, intransigências e perseguições. Allegatio et non probatio quasi non allegatio (Alegar e não provar é quase não alegar) é, de fato, um dos arquétipos mais repetidos no avançar da humanidade, pois fruto da luta da cidadania contra o todo poderoso Leviatã. Ele está na base de todo regime democrático, pois serve de controle à tentação absolutista dos que confundem autoridade com autoritarismo. Ele é o coração que mantém vivo e pulsante o próprio processo penal.
O Ministério Público é parte, pensa como parte, age como parte e, por ser parte, não pode sentenciar. A ele — e somente a ele — cabe provar nos autos o que alega, esquecendo as opiniões pessoais, os comentários jornalísticos ou as notícias vazadas das páginas ausentes no processo. E assim também o juiz que, como integrante do aparelho estatal, não pode dispensar a prova produzida nos autos, goste ou não daquele a quem vai julgar. No processo judicial a longa manus do Estado, como já incorporamos no dicionário da vida, “pode muito, mas não pode tudo”. A única manchete admissível é a de que cada um deles — acusador ou julgador — deve ser o Amigo da Prova, jamais o Amigo da Onça.