“A corrupção que todos dizem querer combater tem a força que tem porque o que se compra com ela é o poder de outorgar a exceção à lei; o poder divino de resgatar pobres almas do inferno da competição global para a estabilidade eterna no emprego e os aumentos de salário por decurso de prazo. Nem um exército inteiro de juízes e promotores imbuídos da mais santa das iras conseguirá por a corrupção sob controle se continuar existindo a possibilidade de comprar e exercer com ela esse poder divino”. A advertência integra o excelente artigo publicado pelo jornalista Fernão Lara Mesquita, para quem foi a luta contra a corrupção que trouxe o processo à tona, mas a crise do Estado brasileiro é muito maior que a parte dela que pode ser explicada pela roubalheira. E conclui com a indicação de que um final feliz possível será vislumbrado quando o último supersalário for sepultado sobre o cadáver do último foro especial.
A verdade é que o embate inclusive midiático travado entre Legislativo e Judiciário a pretexto, de um lado, de combater a corrupção e, de outro, de conseguir anistia para os crimes cometidos com a outorga de exceções à lei, já supera, de longe, os limites da razoabilidade e até da racionalidade. A criminalização do caixa 2 integra as dez medidas contra a corrupção, projeto em discussão na Câmara. É claro que ninguém poderá ser punido por um crime que não existia. Mas os deputados querem inserir, no relatório a ser votado, uma emenda que diz textualmente: “Art. X. Não será punível nas esferas penal, civil e eleitoral, doação contabilizada, não declarada ou não declarada, omitida ou ocultada de bens, valores ou serviços, para financiamento de atividade político-partidária ou eleitoral realizada até à data da publicação desta lei.”
Isso significa literalmente legislar em causa própria, conforme declarou em vigorosa nota oficial o presidente nacional da OAB, Cláudio Lamachia. “É surreal a possibilidade de a Câmara dos Deputados atuar em desconformidade com o interesse público, aprovando uma anistia para a prática criminosa do caixa dois e outros desvios relacionados, como corrupção e lavagem de dinheiro – diz as nota, para acrescentar que “O ordenamento jurídico atual já tem instrumentos para processar e punir esses crimes, por meio do Código Eleitoral e da legislação tributária. Uma nova lei teria como função recrudescer o combate ao crime e não anular o efeito das leis que já existem. É impensável que detentores de função pública queiram usar a oportunidade ímpar de avançar no combate ao caixa dois para perdoar crimes do passado. Os deputados federais, representantes da sociedade, devem respeitar os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade em suas ações. Não podem legislar em causa própria”.
Os parlamentares sabem disso. A imprensa e o judiciário também. Mas a reação contra a iniciativa parlamentar literalmente espúria motivou um clima de guerra entre os poderes. De um lado, o Legislativo esgrime o combate aos supersalários e a lei de abuso de autoridade. De outro, Polícia Federal, procuradores e juízes partem para a ofensiva inclusive nas redes sociais, para estimulá-la a seu favor a reação popular, a pretexto de salvar a lava jato e aprovar as dez medidas sem alterações. Falta bom senso e comedimento em ambas as situações. Especialmente porque os reais interesses do país, da defesa da constituição e das leis e do estado democrático de direito são relegados a plano secundários em favor de anseios corporativos.
Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes foi direto ao ponto: “Sabe que eu estou percebendo, na verdade, é que há um tipo de Batalha de Itararé de desinformação neste tipo de matéria, um jogo, assim, talvez de assimetria de informações. No que diz respeito ao caixa dois, no qual se reconhece que, inicialmente, não era crime, é claro que o crime só existirá daqui pra frente. Agora, se houver corrupção, lavagem de dinheiro, estelionato, qualquer outro tipo de prática, claro que não há de se falar de anistia. É evidente que, em relação à nova tipificação, ela não vai se aplicar a fatos anteriores e também não é de se falar em anistia, nem precisa falar em anistia, porque a lei não retroage”.
É claro que os deputados haverão de querer levar adiante sua pretensão, especialmente ante a perspectiva da delação premiada da Odebrecht. É um erro grave, que será combatido pela OAB por todos os meios legais. Isso não significa, porém, que se vá admitir a aprovação do projeto das dez medidas com os gravíssimos atentados à constituição nele contidos. Em qualquer dos casos é oportuna a advertência com a qual o presidente Cláudio Lamachia encerra a nota: “Caso esse acordo seja real e venha a prosperar, a OAB usará suas prerrogativas para defender a Constituição e a sociedade desse atentado à democracia.”