Ecoa o distinto som cantado pelo ícone da música brasileira Chico Buarque que em março encerra-se o verão, estação mais quente do ciclo anual, propício a mudanças, ao movimento e encerra o segundo ciclo de prosperidade dos frutos da terra e daquilo que desde a primavera (“primeiro verão”) foi semeado.
A posição do Dia da Mulher no 8 de março remonta não só a um evento específico – como usualmente costuma-se aludir -, mas é resultado de uma série de lutas travadas por elas contra o descaso, o abuso e toda sorte de violação de seu corpo e alma, em busca de garantir nada mais, nada menos, que direitos iguais em uma sociedade machista desde a medúla.
Hoje, os dados alarmam. Mesmo nesta quadra da história e do conhecimento, ainda temos de assistir perplexos diariamente histórias de mulheres de todas as camadas sociais, em praticamente todas as sociedades conhecida, sendo vítimas de abusos cometidos por homens, sejam eles parentes (pai, cônjuge, filhos, netos) ou terceiros (patrão, colega de trabalho, estranho que transita na calçada).
Mas não é só a agressão física que insiste em atacar o corpo e o espírito das mulheres mundo afora. A violência silenciosa, que ataca o seu âmago, a sua psiquê, que lhe faz pôr em dúvida a sua dignidade e o seu sentido de vida é uma constante e ouso cogitar até sendo mais grave do que aquela agressão que vitima a carne. O ataque ao corpo deixa marca evidente. O ataque ao psicológico, ao espírito do feminino, deixa profundas marcas, mas invisíveis ao olho incauto.
Especificamente na data de hoje, 5 de março de 2020, dois eventos mexeram comigo e me instigaram ao presente escrito: a realização da Conferência Nacional da Mulher Advogada, sediada em Fortaleza/CE e a realização de uma audiência judicial em que se discute a demanda titularizada diretamente pela estimada colega Eduarda Meyka e indiretamente por todas as mulheres brasileiras.
Para rememorar, nos idos de 2019, a doutora Eduarda se preparava para enfrentar mais um dia de trabalho num ambiente que impõe severos desafios à mulher, que é o ambiente judicial. Contudo, ao pretender adentrar aos pórticos de um prédio da Justiça, foi abruptamente abordada por servidores que, em cumprimento estrito de uma normativa da Corte, questionou as vestes de Eduarda, impondo-a um constrangimento que não ouso tentar narrar, pois não seria capaz de ilustrar neste singelo espaço o gravame que ali se desenrolava contra uma jovem advogada – ou seja, duplamente vulnerabilizada, por ser jovem e mulher advogada.
Já aqui, na Conferência da Mulher Advogada, pude ouvir atentamente as vidas de abnegadas guerreiras que não esmorecem diante dum quadro alarmante de violação sistemática de basilares direitos humanos das mulheres. O depoimento mais tocante, pois de gravidade absurdamente inacreditável, foi sem dúvidas aquele apresentado pela Doutora Milene Serrat Brito dos Santos, obrigada a se submeter à revista íntima para poder atender um cliente detido no Centro de Triagem de Marambaia, em Belém/PA.
Contou ela que foi admoestada a levantar sua blusa e baixar sua calça para que a agora policial penal pudesse passar o detector de metais. Narrou a vergonha que sentiu, a vergonha que viu a outra mulher ali presente também sentir por estar colocada naquela situação inacreditável e encerrou contando os impropérios que teve de ouvir do Diretor da Casa Penal que questionado o porquê daquela situação abusiva e ilegal, respondeu que o procedimento estava sendo adotado e continuaria sendo adotado porque eram nós, advogados, que estaríamos levando celular e droga para o interior da carceragem!
Ao ouví-la, tive de questionar minha sanidade, minha racionalidade. Afinal, não era possível, não era crível que em pleno 2020, superado o período de exceção da ditadura militar, já na égide da Carta de 1988, sob os auspícios da Lei Federal nº. 8.906/1994, uma advogada, no exercício de seu mister, tivera de se submeter a tão degradante tratamento.
Ali, não se atingia somente a Doutora Milene, se estava a apequenar a gigantesca importância de que goza a advocacia no cenário democrático brasileiro. Com maior gravidade, pois em face de uma mulher, justamente por ostentar esta condição bio-política – de ser mulher.
Daí se vê que tais temas são importantes e representativos de uma situação grave que produz deletérios efeitos rotineiramente. Afinal, ocorrências de tal natureza são rotineiras, basta uma breve pesquisa nos sites disponíveis para se localizar narrativas semelhantes.
A celeuma propõe ainda um debate mais aprofundado, com raízes na formação sócio-política do Brasil e do mundo. Inegável e indisfarçável que à figura da mulher sempre relegou uma posição inferior, sujeitada a um esquema de exploração servil que ainda hoje exala efeitos perniciosos. Somente em 1932 a mulher obteve direito ao voto no Brasil. Alvissareiro? Não. O exercício deste consagrado direito de cidadania era condicionado, vejam o absurdo, à autorização do marido, se casada fosse. A primeira mulher à alçar o cargo de Ministra da Suprema Corte brasileira foi a eminente Ministra Ellen Gracie Northfleet, isso nos idos de 2000.
Pensemos: ressoa normal que uma pessoa deva ser sindicada quanto ao conteúdo de suas vestes no exercício de sua profissão? Pode uma mulher ser submetida à revista íntima, vexatória por natureza, sob o argumento desatinado de que seriam os advogados os responsáveis pelo ingresso de itens indevidos no sistema carcerário. É o Estado, vez mais, pretendendo transpor as consequências de suas falhas administrativas endêmicas aos particulares, sob o pretexto de se estar cumprindo deveres de ordem. Tática tão velha quanto eficaz, mas aqui não! Não diante da advocacia brasileira! Juntos, como estamos, somos bem mais fortes!
Obviamente, em nenhuma das situações aqui narradas tratou-se de mulheres cometendo algum ato ilícito. É sempre a saia que está um ou dois dedos acima do joelho. É sempre um recorte da blusa que ao ver do censor vulgariza e expõe o corpo feminino. Como se fosse possível negar a natureza. O corpo feminino é por excelência diferente do masculino! Essa imposição de negação do corpo é a negação do feminino, impondo-lhe a vergonha e o dever de se auto-negar, de se esconder. Ainda reflete a objetificação da mulher, cujo corpo, se mostrado ainda que em pequenos detalhes, poderia fazer aflorar a sexualidade irracional e animalesca do homem, incapaz de conter seus impulsos carnívoros e lhe causar torpeza de julgamento. Nada mais arcaico. Nada mais absurdo.
Hoje, necessária a crítica e a auto-crítica. Não nos basta não sermos machistas ou misóginos. Nos é exigido sermos feministas. Eles por elas indistintamente!
Estamos na trincheira obstinados a não mais permitir que isso insista em ocorrer. A OAB necessita investir contra esses predadores, a fim de que haja a verdadeira igualdade de gênero!