De Ruy Barbosa a Tancredo Neves, até os dias “estranhos” de nossa conturbada realidade nacional, não há um único estadista digno do nome que tenha negado a importância do fortalecimento da justiça e a segurança jurídica para o desenvolvimento econômico do país e melhoria das condições de vida da população. Fora do direito democrático à justiça não há dignidade, liberdade ou paz social. O próprio Tancredo advertiu, em seu histórico discurso de 1982, que – “O processo ditatorial, o processo autoritário, traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão.”
É preciso deixar claro que o episódio que escancarou a burla aplicada pela chamada “Operação Pau Oco” não foi um fato isolado. Nem se encerra nele mesmo, tamanha sua gravidade. As reações nem de longe se aproximam das consequências dos atos criminosos praticados pelos delegados do Núcleo de Repressão às Ações Criminosas Organizadas do Interior – Draco 2. O áudio vazado para a imprensa é a confissão do crime: foi alterada a transcrição de uma fita para reunir os suspeitos em uma organização criminosa. Uma estratégia para dar maior robustez à denúncia, conforme admitiu o próprio delegado responsável pela operação.
O episódio exige que lhe seja adequadamente atribuída a gravidade que escancara, com a exata dimensão de seu conteúdo de veneno, peçonha e acrimoniosidade. Ao confessar a culpa, o delegado fê-la projetar-se para muito além da corporação policial. Ela estende um manto de vergonha, desconfiança e medo sobre todo o sistema judiciário, operadores da justiça e da segurança pública. Atinge toda a sociedade, na tentativa de contaminar valores em defesa dos quais cada cidadão tem o dever de se postar, posto que afeta diretamente sua vida. Não há segurança fora do que estabelece a constituição e as leis no estado democrático de direito. E sem segurança não existe liberdade. Não foi portanto, aquele, um caso isolado que possa ser lançado ao esquecimento por uma nota oficial que anuncia afastamento de delegados e promete severa investigação, inclusive sobre a atuação da imprensa, talvez pelo atrevimento de ser portadora da má notícia.
A se confirmar a veracidade das declarações vazadas – e não se vislumbra, até aonde a vista alcança, razões para não serem – é fundamental a rigorosa aplicação do que estabelece a legislação, como recomenda, em nota oficial, a OAB Rondônia: “Tais fatos demandam pronta apuração para confirmar a autenticidade dos áudios e fatos apontados nas reportagens e matérias jornalísticas veiculadas, a ser cumprida pelos órgãos de controle e fiscalização do exercício da atividade policial, assegurado o plexo de direitos fundamentais, notadamente, ampla defesa, contraditório e devido processo legal”.
Não se pode esquecer, porém, que o episódio reflete uma situação de fato, para a qual temos insistentemente chamado a atenção aqui: o estado policial, que prende para investigar, quando deveria, como recomenda a constituição, investigar para prender, depois de julgamento justo no devido processo legal. São efeitos colaterais da utilização ditatorial de artifícios criminosos a pretexto de combater a criminalidade. Esses fatos foram trazidos a público pelo vazamento das declarações do delegado. Quantos outros, igualmente dramáticos e assustadores, não terão ocorrido, acobertados pelo silêncio, escamoteados pela impunidade e até aplaudidos por uma parcela da população sedenta de vingança? Quantos mais casos já não terão ocorrido em um estado policial que institucionaliza a corrupção a pretexto de combatê-la. Que declaradamente incorpora o assassinato de reputações como instrumento de investigação?