Brasília – O artigo “Brasil precisa de pacto para e pelos povos indígenas” é de autoria do diretor tesoureiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Antonio Oneildo Ferreira, e foi publicado no site Consultor Jurídico. Segue a íntegra:
Em quase 25 anos de vivência jurídica, sempre tive a lei como instrumento de eficácia da Constituição Federal, e as ordens judiciais como expressão de defesa da cidadania e fortalecimento do estado democrático de direito.
Na atual polêmica em torno da homologação de terras indígenas no Estado do Mato Grosso do Sul e a possível desintrusão dos não índios, o fato mais repercutido foi o descumprimento de uma ordem judicial pelas lideranças indígenas. Foram veiculadas manifestações e mais manifestações de juristas e autoridades escandalizadas e indignadas com o fato.
O fato pautou toda a grande imprensa nacional, com destaques e manchetes. A presidenta Dilma foi instada a se manifestar sobre o assunto. Não sobre a homologação da terra indígena, mas sobre o descumprimento da ordem judicial, ou a resistência em cumpri-la. Disse a Presidenta que “no Brasil se cumpre a lei, e ordem judicial também”. Seria de bom alvitre que também se cumprisse a Constituição da República.
Uma ordem judicial pode declarar uma lei inconstitucional. Pode também uma ordem judicial declarar uma emenda ao texto constitucional inconstitucional. Mas, não pode uma ordem judicial declarar parte do texto constitucional originário, inscrito pelo constituinte de 1988, inconstitucional, por mais que haja um distanciamento ou aparente conflito entre dispositivos.
O constituinte de 1988 assegurou resumidamente os direitos dos povos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição, e determinou, no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que a União concluísse a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Este prazo vai quintuplicar em 4 de outubro próximo, sem o seu cumprimento, sem que nenhum desses juristas ou autoridades que trataram do descumprimento da ordem judicial se escandalizem com o descumprimento de dispositivo constitucional destinado a defesa de direitos humanos e direitos históricos e fundamentais dos povos indígenas.
A mora da República, o alheamento ao mandamento constitucional originário, é o fator principal de todos os danos causados aos povos indígenas do Brasil, com um cenário de violência e impunidade estarrecedor. (V.g. Somente no curso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de 1981 a 2008, as entidades de defesa dos direitos humanos contabilizam 32 casos de homicídios ou tentativas contra lideranças indígenas, sem nenhuma condenação dos assassinos.)
As fazendas ocupadas pelas lideranças indígenas estão inseridas em terras indígenas reconhecidas e pendentes de homologação. A decisão judicial que determinou a retirada dos indígenas de suas terras contraria mandamento constitucional de eficácia plena, expedido pelo constituinte originário, em absoluta contramão histórica e jurídica às ações afirmativas destinadas aos povos indígenas.
Geralmente as liminares concedidas em conflitos relativos a demarcação e homologação de terras indígenas são pautadas exclusivamente em questões processuais, sem nenhuma vinculação ou fundamentação com o mérito do conflito, fato que enseja uma resistência dos indígenas pela incapacidade de entender e aceitar a restrição de acesso a suas terras fundada eminentemente em aspectos burocráticos.
Neste quadrante inserido no simbólico ato festivo de comemoração de um quarto de século de promulgação da Constituição Cidadã, a ofensa aos postulados constitucionais que densificam e concretizam os direitos humanos e fundamentais pertinentes aos povos indígenas é um fator de preocupação que demanda profunda reflexão.
Destaque-se ainda que, em relação ao fato concreto ventilado acima, as intervenções têm duas conotações muito claras. A dos indígenas que requerem a mediação no sentido de evitar a violência e resguardarem seus direitos. E dos contrários, mídia e capital, que pregam mediação consistente em acordo, onde todos cedem e todos ganham.
Essa concepção trabalhista e civilista, escamoteadas em atitudes “envolventes e conciliatórias”, tem um óbice intransponível, já que o constituinte originário de 1988 declarou serem as terras indígenas “inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”, conforme parágrafo 4º do artigo 231 da Constituição da República. Assim, ou é terra indígena, e se homologa e se destina ao usufruto dos povos indígenas, não havendo o que se acordar, ou não é e se destina ao particular que a possuir, nos termos da lei.
É premente o cumprimento do comando constitucional afeto a uma das matrizes fundantes da brasilidade, a indígena.
Neste cenário de metas para o poder judiciário, de PAC para o Executivo, e de pactos para os Poderes da República, seria extremamente pertinente a construção de um pacto para e pelos povos indígenas do Brasil. Nada de novo. Só o cumprimento da Constituição.