Artigo 60 § 5º da Constituição: “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Não pode, ponto. Não cabe discussão. O Regimento interno da Câmara. Não importa se o texto derrotado na terça-feira saiu de comissão especial, se era o texto original ou resultado de emenda aglutinativa. O objeto é a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Isso foi reprovado. Todo o resto são firulas regimentais que haverão de permanecer circunscritas ao ambiente dominado pelo deputado Eduardo Cunha. A segunda votação é, portanto, inconstitucional. Assim como a proposta de emenda, que altera uma cláusula pétrea da Carta.
Valeu tudo no episódio até agora. Menos responsabilidade, postura ética, respeito e bom senso. O jornalista Ricardo Noblat observa que poucos foram os que ensaiaram, na Câmara, um discurso mais consequente – seja para aprovar ou derrotar a proposta. Ele observa ser fato que a maioria esmagadora dos brasileiros – 87% segundo pesquisa Datafolha – deseja a redução da maioridade penal. “Mas, e daí? Desde quando a vontade de maiorias ocasionais deve ser satisfeita? “Se perguntarem se o sujeito é a favor da pena de morte, é possível que a maioria responda sim. Num passado nem tão distante, a maioria já foi favorável à manutenção da escravidão”. Ele aduz ainda que uma eventual pesquisa sobre se o fechamento do Congresso é melhor para o país, a resposta será provavelmente um assustador “sim”. É claro que ninguém vai pensar em atender.
Mas embora absolutamente coerente, seu comentário mereceu uma saraivada de manifestações furiosas dos leitores, o que comprova que o debate já abandonou o campo da razão para situar-se na zona morta da paixão, na qual não inexistem argumentos capazes de saciar a sede de uma população que não suporta mais a insegurança, a violência, a corrupção e a impunidade, companheiros inseparáveis de jornada a vida brasileira. Mas as pessoas sensatas sabem que a simples redução da maioridade penal não melhora a vida de ninguém, a não ser dos deputados da bancada da bala, que se elegeram prometendo lutar contra a criminalidade e são incapazes de exibir alguma proposta minimamente razoável.
E mais: testemunha a absoluta falta de seriedade na condução do assunto a mobilização, madrugada adentro e logo após a derrota na votação original, da tropa de choque do deputado Eduardo Cunha para mapeamento da votação e cabalagem dos votos passíveis de revisão. Para a conquista dos seis necessários, foram suprimidas do texto reprovado referências ao narcotráfico – principal foco de aliciamento de menores para o crime – e até mesmo a proibição do contingenciamento orçamentário de programas socioeducativos e de ressocialização de menores em conflito com a lei.
O fato é que o deprimente espetáculo de horrores não acabou. O assunto ainda terá que ser submetido à segunda (que na verdade é terceira) apreciação em plenário para ser apreciado no Senado. Envolve, de passagem, a disputa entre Eduardo Cunha e o governo, o enfraquecimento da posição do vice Michel Temer como timoneiro da galera política governamental e as manifestas insatisfações do presidente Renan Calheiros. Além – desnecessário dizer – da demora na liberação de emendas parlamentares e das indefectíveis nomeações de apadrinhados desta ou daquela liderança para os cargos de segundo escalão – coisinha de nada, que arrepia de terror qualquer um dirigente dotado de um mínimo de seriedade no trato com a administração pública. Em meio a tudo isso, estarão igualmente presentes os manifestantes contratados e outros em busca de holofotes, que não convencem a mais ninguém. Não se sabe como ainda não apareceram os black blocs a serviço das esquerdas.
A OAB reafirma, porém, seu compromisso de manter o foco no respeito à constituição e de não se deixar envolver nessa baderna demagógica que se instalou na discussão de uma questão de tamanha gravidade como a segurança pública. Vamos arguir a dupla inconstitucionalidade do projeto caso ele venha a ser aprovado no Senado. E mobilizar a sociedade civil organizada para um amplo debate capaz de apontar providências realizáveis e eficazes para o problema da criminalidade. Sem excludências, demagogia e/ou primariedade mental. Mas dentro do absoluto respeito às leis e às instituições democráticas. É, em última análise, o que a população brasileira de fato espera. E merece.