Apesar de execrada pelas representações classistas de juízes, procuradores e policiais federais, a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, que considerou inconstitucional a condução coercitiva de investigados para interrogatório, foi considerada nos meios jurídicos como mais uma vitória da OAB em benefício da cidadania. A liminar estabelece, por seu descumprimento, pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. A decisão foi proferida em ADPF do Conselho Federal da OAB, para o qual o direito a não autoincriminação é direito fundamental, que nasce da dignidade da pessoa humana. E observa que o artigo 260 do CPP, que dá à autoridade o poder de mandar conduzir o acusado à sua presença para ser interrogado, não foi recepcionado pela Constituição Federal, por incompatível com a presunção de inocência e com o direito de não se autoincriminar. A liminar ainda será levada a julgamento pelo pleno do STF, mas a expectativa é por sua aprovação, considerada o forte embasamento técnico do documento da OAB, pautado exclusivamente na defesa do cumprimento da lei. Nada, além disso.
Gilmar Mendes observou, na análise da ação, que o ordenamento jurídico de inúmeros países confere algum poder às autoridades policiais para restringirem a liberdade de suspeitos de crimes graves, ainda que temporariamente. A constituição, porém, enfatiza o direito à liberdade, no deliberado intuito de romper com práticas autoritárias, como as prisões para averiguação. Assim, salvo as exceções nela incorporadas, exige-se a ordem judicial escrita e fundamentada para a prisão, de acordo como que estabelece o artigo 5º, LXI. “Logo – registra – tendo em vista que a legislação consagra o direito de ausência ao interrogatório, a condução coercitiva para tal ato viola os preceitos fundamentais previstos no art. 5º, caput, LIV e LVII. Em consequência disso, deve ser declarada a incompatibilidade da condução coercitiva de investigado ou de réu para ato de interrogatório com a Constituição Federal. Ademais, ainda que se vislumbrasse espaço para a condução coercitiva para interrogatório, tal fato seria uma excepcional restrição da liberdade do acusado”. Ele acrescenta que “Nesse contexto, não vejo como, mesmo quem considere a condução possível, se possa deixar de exigir a rigorosa observância da integralidade do art. 260 do CPP, ou seja, intimação prévia para comparecimento não atendida”.
O instrumento da condução coercitiva é apontado pelos órgãos de investigação como um dos principais recursos para a coleta de provas durante operações policiais. O instrumento é considerado “menos gravoso” que a prisão temporária. Seus defensores desprezam, deliberadamente, o que estabelece a legislação, que exige prévia intimação não atendida para sua efetivação. Isso acontece porque, intimado a comparecer, o investigado ou testemunha poderá se fazer acompanhar de seu advogado, o que fragiliza o poder de coerção do procedimento. Mas é o que preconiza o estado democrático de direito, no qual a presunção de inocência é fundamental. Ninguém é contra o combate à corrupção ou a aplicação dos rigores da lei contra os criminosos. O que a OAB não admite – e contra isso haverá de continuar lutando em todas as instâncias – é que a lei seja desprezada a pretexto de punir quem a despreze. Ademais, considerar pouco “gravoso” o uso indiscriminado da condução coercitiva é a tal monta absurdo que não há como dissociar o raciocínio dos regimes totalitários, nos quais a liberdade e os direitos dos cidadãos são secundários.
Para quem se vale da condução coercitiva como medida cautelar autônoma com a finalidade de obtenção de depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em qualquer investigação de natureza criminal, a decisão liminar do ministro deixa bastante claro que seu descumprimento poderá ensejar responsabilidade disciplinar, civil e criminal do agente. E representa uma significativa reação ao estado policial e à sanha punitivista que espíritos totalitários insistem em incorporar à realidade jurídica brasileira. Especialmente quando tal instrumento se fazia rotineiramente acompanhar do vazamento de informações sigilosas de inquéritos policiais como forma de impor a meros suspeitos todo o rigor da execração pública igualmente criminosa. Sempre foi o recurso a caminhos mais fáceis para a investigação, nos quais o direito à plena defesa era preliminarmente fragilizado a ponto de criminalizar o trabalho do advogado e jogar para as calendas a presunção de inocência.
Há que se perguntar, portanto, quantas vidas já terão sido destroçadas por acusações frágeis e indiscriminadas nessa estratégia perversa de apontar culpa a todos os investigados até que sua inocência seja provada? Quantos cidadãos de bem já não foram publicamente torturados, maculados em sua honra, emasculados publicamente, execrados, desalojados e literalmente escorraçados do convívio social sem nem mesmo processo formal? É de se perguntar se pode ser esse o preço a que sujeitam pagar todos os cidadãos na luta contra a corrupção? Quantos ainda terão que ser levados ao suicídio pela humilhação sofrida? Será que o arcabouço legal brasileiro é assim frágil a ponto de justificar tamanha prática de desvios na persecução penal? A resposta é obviamente não! E a OAB vai permanecer atenta e vigilante, tanto para apoiar e colaborar integralmente no combate à corrupção como para exigir que a constituição, o processo legal e a ampla defesa sejam resguardados. Porque é isso que espera das instituições o estado democrático de direito.