Por que tanta gente no Brasil parece odiar os direitos humanos?
65 anos depois de a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONUter estabelecido um padrão de civilidade que pudesse ser cobrado em toda parte a impressão dominante, no Brasil, é a de que alguma coisa está bastante errada.
O Brasil é um país com graves problemas de formação social.
O povo brasileiro sempre foi dominado por cadeias de opressão duríssimas.
Nossa história é marcada por profundas estratificações que geraram abismos de desigualdade ainda hoje existentes.
O Estado brasileiro ainda é muito ineficiente – apesar de rico e forte.
Boa parte de nossas estruturas políticas estão contaminadas pela corrupção sistêmica.
A maior parte dos brasileiros duvida de seus líderes, desconfia das autoridades, descrê do exercício desinteressado do poder.
Somos reconhecidamente um país violento, de abusos reiterados, um lugar onde a vida humana vale muito pouco.
Não apenas nossas cadeias são infernos institucionais.
Os hospitais públicos também o são.
Grande parte das escolas públicas não respeitam padrões mínimos internacionais de educação.
Nossas estradas são máquinas de matar, assim como as ruas de nossas cidades, campeãs mundiais em morticínio anual.
Então, por que as pessoas, sempre que podem, se manifestam de modo tão violento contra a principal ideia surgida nos últimos séculos para defender o respeito incondicional ao valor que cada vida humana possui?
De onde saiu a expressão “direito de bandidos”, expressão pueril que joga a enorme massa de oprimidos e dominados contra a própria boia de salvação?
A opinião pública brasileira vive hoje de um grande e perigoso equívoco a respeito da ideia de direitos humanos.
As pessoas não percebem que os seus direitos mais fundamentais estão entre aqueles que elas denunciam quando gritam: “Cortem a cabeça!”
A defesa incondicional da igualdade, da liberdade, de um julgamento justo, da educação, saúde e respeito não admite a intolerância e a violência.
O cidadão que hoje exige o fogo para o injusto deve sempre pensar que, em razão de novas injustiças amanhã, ele próprio pode ser lançado à mesma fogueira que hoje ele ajuda a acender.
Naturalmente, o desrespeito à vida em um país como o Brasil – o novo, rico e forte Brasil – é tão grande que a maior parte de nós se permite nutrir com o ódio social que nasce dessa violência que nos afeta tanto.
Mas a ideia de direitos humanos não surgiu para fomentar a injustiça.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos não foi proposta e assinada para que ladrões, assassinos e covardes exploradores das fragilidades alheias dominassem o mundo.
Ela surgiu exatamente pelos motivos contrários!
Ao final da Segunda Guerra Mundial dezenas de milhões de pessoas, muitas delas inocentes, sem envolvimento direto com o conflito, foram massacradas impiedosamente.
Abusos incomparáveis foram perpetrados por uma racionalidade humana corrompida pelo ódio.
Ainda hoje, graças à corrupção, à estupidez e ao mesmo ódio sobrevivente governos, corporações, grupos e indivíduos ainda roubam, matam e exploram, barbaramente.
O que não podemos é nos deixar contaminar pela fúria que nos deixa cegos, e pelo ódio que não nos permite pensar.
O cidadão comum que sofre as penas diárias do alto custo de viver num país ainda muito autoritário e desigual como o Brasil precisa refletir melhor: quem está querendo enganá-lo fazendo-o acreditar que a defesa dos direitos humanos aumenta a violência?
Os direitos humanos servem para quem?
A resposta sempre foi simples: para todos!
Ativistas dedicados e corajosos arriscam-se, todos os dias, mundo afora para combater e denunciar violações a direitos básicos de todas as pessoas.
Se muitos deles se metem em cadeias fétidas e miseráveis ou em becos escuros e imundos é porque sabem que ali, longe dos olhos da sociedade, o abuso do poder opera sem maiores dificuldades.
Mas você que teve a sua casa invadida ou que perdeu um filho num acidente de trânsito, você que teve um parente doente maltratado num hospital público decrépito, enfim, você também tem direito a ver seu direito de propriedade, seu direito à vida, à saúde, seu direito à dignidade preservado, defendido, integralmente.
Quando um líder conservador e retrógrado grita pedindo “morte ao bandido”, ele apela contra o direito humano à vida e ao julgamento justo, assim como, por interesses espúrios, amanhã gritará pedindo o chicote para quem reclama da falta de direitos.
Ou seja, se você sair à rua para reclamar contra a corrupção, a falta de escolas ou hospitais decentes já sabe pelo que pode passar.
Alguns meses atrás estivemos em uma audiência no Tribunal de Justiça de Rondônia para opinar, pela OAB, em um processo movido pelo sindicato dos agentes penitenciários contra o governo a favor de melhorias para a categoria.
Quando a discussão tratava do pagamento automático ou não da insalubridade para os servidores que atuavam nas cadeias apresentamos ao magistrado um conjunto de relatórios do Ministério Público Estadual sobre as prisões em Porto Velho.
Em um trecho de um dos relatórios o laudo técnico concluía: “totalmente insalubre ao convívio humano”.
Concluí ao magistrado: “não vês, portanto, que basta estar perto desse lugar para ser merecedor não só de adicional de insalubridade, mas de proteção divina para não morrer? O Governo tem que pagar”.
Servidor da justiça e apenado não foram condenados à morte lenta pela exposição ilegal ao risco.
Na querela estava em jogo uma questão fundamental de direitos humanos: a saúde e a segurança dos servidores e o cumprimento da pena dentro dos limites definidos pela justiça.
Poucos servidores do Estado são alvo tão frequente de ativistas de direitos humanos quanto agentes penitenciários.
Mas, naquela ocasião era bastante óbvio que a luta da categoria não era somente justa, mas uma questão prioritária de direitos humanos, já que implicava a defesa de garantias básicas dos indivíduos que colocam suas vidas em risco para zelar por algo que a sociedade prefere ignorar.
Como se vê, 65 anos depois ainda lutamos pelo básico.
Talvez estejamos longe de conseguir que todas as pessoas sejam tratadas de forma igual, nas condições de nossa civilidade.
Mas não podemos rejeitar a oferta histórica que nos é feita de somar esforços para que essa utopia seja para nós uma realidade.
Sem a ideia de direitos humanos dificilmente poderíamos ter a esperança de superarmos horrores com os quais, infelizmente, ainda convivemos.
O que podemos afirmar é que a recusa dessa ideia não nos levará a sermos melhores do que somos.
Devemos lutar para que a vida de toda e qualquer pessoa seja vivida integralmente a partir do respeito e da dignidade inquestionável que lhe é devida.
Os erros do nosso entendimento não podem destruir as melhores razões que temos para viver e lutar.
Direitos humanos para todos! Vida longa à Declaração!
Rodolfo Jacarandá
Advogado. Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/RO
Professor do Departamento de Filosofia da UNIR
Líder do Grupo de Pesquisa CNPq/UNIR “Ética e Direitos Humanos”
Gustavo Dandolini
Advogado. Vice-Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/RO
Professor de Direito Penal e Direitos Humanos