Calma! Não vou lançar uma nova versão do divertido jogo “Detetive”. Não estou, portanto, plagiando o advogado inglês Anthony Pratt que, em 1949, criou o jogo de tabuleiro por onde desfilavam os suspeitíssimos Sr. Marinho, Prof. Black e Cel. Mostarda, acompanhados das imperdíveis Dona Violeta, Srta. Rosa e Dona Branca. Não estou afirmando que um ferraço é mais eficiente como instrumento mortífero do que o castiçal, cano, chave inglesa, corda, revólver ou faca. Tampouco que o Senado tem uma ambiência propícia para que crimes sejam ali praticados, notadamente em seus gabinetes, salas de reunião, chapelaria, plenário, biblioteca, restaurante, comissões ou sala de cafezinho.
Esclareço, assim, que este artigo não tem como finalidade refletir sobre o jogo da Waddingtons, mesmo porque criado para inocente e coletivo entretenimento. E mesmo que o título possa assim insinuar, não discutirá qualquer morte havida no Senado, como a do senador José Kairala (PSD-AC), vitimado pelo disparo que brotara da ira do senador Arnon de Mello (PDC-AL), na sessão parlamentar de 04 de dezembro de 1963. Até mesmo a saga do filósofo-político francês Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, não será aqui narrada, ainda mais quando o iluminista que abalou o absolutismo da Idade Moderna e serviu de farol para a Revolução Francesa, morreu de febre no distante 10 de fevereiro de 1755.
O assassinato em que se interroga no título é de outra monta, especificamente o delito anunciado na sala da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no dia 30 de maio de 2017, quando da leitura do relatório da chamada Reforma Trabalhista (PLC 38/2017). O ato preparatório do crime apalavrado foi descrito por seu próprio autor, o senador Ricardo Ferraço, quando apontou graves lesões à classe trabalhadora no projeto originário da Câmara dos Deputados, dentre elas o trabalho de gestante e lactante em ambiente insalubre; os serviços extraordinários da mulher; a possibilidade de acordo individual para jornada 12×36; as questões referentes ao trabalho intermitente; a representação de empregados e a negociação do intervalo intrajornada. O crime que revelou querer praticar, confessando-o, é o de lesa-república, tipificado na proposta do Congresso de renunciar à sua função constitucional de legislar (arts. 48 e 59, CF), transferindo esta missão ao Executivo que, em prévio exame de corpus delicti, patrocina a própria lesão.
A inédita proposta de renúncia ao dever de legislar fere cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 60, § 4º, III), causando grave ferimento ao princípio da separação dos poderes, imodificável até por emenda constitucional. Ao apontar que determinados temas do PCL 38/2017 continham ilegalidades ou injustiças, sabendo-se bicameral o parlamento brasileiro (art. 44, CF), deveria rejeitar o projeto com arquivamento (art. 65, caput, CF) ou devolvê-lo para que a Câmara dos Deputados exerça o seu direito de correção ou ratificação da proposta originária. Nunca encaminhar para sanção presidencial o projeto de lei que confessou ser merecedor de rejeição ou, mais grave, pedindo o próprio parlamento que seja ele vetado ou corrigido via medida provisória.
O senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), naquele fatídico dia, ao ferir de morte o princípio da separação dos poderes, disparou contra Montesquieu. E ao atingir o criador do princípio da separação dos poderes, o senador brasileiro recolocou o célebre “Do Espírito das Leis”, outra vez, no índice dos livros proibidos – o Index Librorum Prohibitorum. Retirando de circulação o espírito que ilumina o poder de legislar do Congresso Nacional, na mesma tentativa, atingiu-se o coração republicano da Constituição Federal.
É bem verdade que o plenário do Senado ainda pode rejeitar a proposta parlamentar em que o Congresso se autolesiona, arquivando ou devolvendo para a Câmara dos Deputados a proposta que fará a legislação laboral receber a alcunha de Consolidação das Lesões Trabalhistas. Ou mesmo poderá o senador Ricardo Ferraço externar o arrependimento eficaz, desistindo, voluntariamente, de matar o espírito de Montesquieu, sendo absolvido pela tentativa de eliminar a Constituição Federal. O que se espera dos senadores brasileiros é que também sejam detetives encarregados da prevenção de crimes constitucionais, afinal, como ensinou o iluminista francês: “Uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa”.