As garantias constitucionais têm sido usadas de modo utilitarista no Brasil. As corporações e os políticos só as defendem quando são convenientes a suas posições imediatas na disputa de espaço pelo poder. Precisamos de sincero compromisso com a defesa irrestrita do Estado de Direito para todos os brasileiros.
Nosso país é prova de que o novo estágio das sociedades capitalistas, chamado de “fase informacional”, tem aberto grandes oportunidades de aprimoramento democrático e também do arcabouço legal. As pessoas nunca tiveram tanto acesso facilitado a informações determinantes para a formação de convicção sobre questões fundamentais como agora.
A Lei de Acesso à Informação, grande conquista da sociedade, resultou num crescimento sem precedentes do conhecimento disponível sobre a máquina e o orçamento públicos. Ao mesmo tempo, iniciativas de combate efetivo à corrupção –como a Lei da Ficha Limpa e o fim das contribuições empresariais a candidatos e partidos– foram concretizadas em prazo relativamente curto graças às novas tecnologias comunicacionais, capazes de aglutinar a população por meio da internet.
A enorme quantidade de dados disponíveis permite também a identificação de uma forte contradição entre o estágio avançado da sociedade em alguns setores e o retrocesso que ameaça outras áreas importantes para a continuidade do desenvolvimento. O aumento de informações tem sido desproporcional ao necessário incremento da compreensão sobre o mundo que se tem e que se quer.
Ao passo que a concepção das liberdades e das garantias individuais evoluiu ao longo dos séculos, é notável que existe, em nosso país, um movimento intenso de repúdio ao reconhecimento de alguns direitos fundamentais, pilares do Estado Democrático de Direito que permitem o aperfeiçoamento da forma republicana de governo. Sem as garantias fundamentais não existe convivência social civilizada e não há luta válida contra a corrupção nem a possibilidade de questionamento dos que estão no poder ou almejando alcançá-lo.
Atores ligados a variadas ideologias, sejam mais atreladas à direita ou à esquerda, têm prestado um desserviço ao país ao aplaudir as violações dos direitos de seus adversários. Abuso contra alguém próximo é arbítrio. Mas contra os adversários é Justiça. Muito mais altivo, porém, seria justamente o contrário: a defesa do respeito às leis em relação aos adversários ou grupos minoritários. Somente as pessoas de espírito elevado e os estadistas conseguem fazê-lo, colocando a luta política em segundo plano para priorizar a defesa das regras estabelecidas.
Até mesmo alguns agentes institucionais, como partidos, movimentos organizados e detentores de mandato têm aderido a esse ataque contra a democracia. Essa lógica fragiliza a Constituição e fortalece quem abusa do poder. O Estado de Direito existe justamente para proteger os adversários e as minorias. Os basilares direitos à liberdade e à igualdade devem ser assegurados a todos. As balizas constitucionais do devido processo legal, da presunção de inocência e do direito à ampla defesa são garantias postas na Constituição com o mesmo vigor dos princípios da liberdade de expressão e de imprensa. Cuida-se de postulados constitucionais intangíveis, que não podem ser flexibilizados, sob pena de esmorecimento do próprio regime democrático. Sem eles, impera o arbítrio e o abuso de poder.
É preciso lembrar que o limite imposto ao exercício do poder existe para proteger aqueles que estão submetidos à mão do Estado e de suas instituições. Esses parâmetros estão contidos no sistema de direitos e garantias das cidadãs e dos cidadãos, estabelecidas na Constituição da República, que visa a proteger a todos, mas, especialmente, os opositores do poder, os adversários políticos, as minorias.
Como exigir do Estado o cumprimento da lei se, nas bases da sociedade, há o estímulo ao achincalhe dos opositores? Não é possível garantir os direitos para os amigos e torná-los inacessíveis aos inimigos. Toda iniciativa nesse sentido representa o enfraquecimento do sistema de direitos e garantias para todos os indivíduos.
Os discursos ideológicos no Brasil têm sido marcados por esse uso utilitarista das garantias constitucionais. Quando alguém da esquerda é presumivelmente violentado em seus direitos, os adversários aplaudem o ato e os correligionários denunciam o que seria um abuso. Quando o agredido é uma pessoa tida como conservadora, a esquerda festeja e os coligados apontam a prática de arbítrio.
Não se constrói um Estado de Direito deste modo. As leis devem valer para todos, tanto no que diz respeito aos direitos quanto no tocante ao seu rigor. Como disse Rui Barbosa, um dos fundadores da República, a ofensa à garantia constitucional de um cidadão põe em risco todo o sistema jurídico. Definitivamente, os fins não justificam os meios e a luta política não deve extrapolar o limite do respeito aos direitos de todos, especialmente dos adversários.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é advogado militante nos tribunais superiores, em Brasília. Foi presidente nacional da OAB de 2013 a 2016. É doutor pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Possui mais de 10 livros jurídicos publicados, incluindo o título “Garantias Constitucionais e Segurança Jurídica”. Atualmente, preside a Comissão Constitucional da OAB.