A terrível tragédia ocorrida em Janaúba, interior de Minas Gerais, no dia 05 de outubro deste ano, na creche Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente, vem trazer o alertar acerca da insegurança em creches, escolas e outros espaços públicos, onde deixamos, diariamente, nossas inocentes crianças. Como um terrorista deste, exercendo o cargo de vigia, ateou fogo em cerca de 50 alunos e professores que estavam no recreio, destruindo o futuro de tanta gente inocente, que acreditava estar protegida e segura. De quem é a culpa afinal?
A crueldade e falta de humanidade, para com as crianças, vem de longe. O jornalista Eduardo Bueno relata que, no período colonial, crianças judias, conhecidas pelos portugueses como “crianças dos lagartos”, eram jogadas aos crocodilos para serem devoradas. Desde as primeiras expedições, pelo menos 10%, da frota de Cabral eram crianças, algumas recrutadas compulsoriamente, mas, a maioria era alistada pelos próprios pais, que embolsavam o soldo dos meninos. Durante todo o período colonial, crianças denominadas “grumetes ou pajens”, eram usadas como escravas braçais e sexuais, nas glamorosas caravelas e naus marítimas em direção ao tão sonhado “Novo Mundo ou Terra sem males”, hoje chamado Brasil.
A educadora Ligia Costa Leite, conta que, em 1550, o educador jesuíta Manuel da Nóbrega, requeria meninos órfãos de Portugal, para ajudar-lhe no aprendizado da língua dos curumins, a fim de “educa-los”; porém, muitos fugiam para morar nas ruas com as meninas indígenas, pelo que relatava essa situação em cartas. Em 1738, a imprensa noticiava o crescente número de crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil. Desde o início também, meninas órfãs, eram enviadas de Portugal, para o casamento forçado com homens execráveis, sórdidos e velhos, também para satisfação sexual dos colonizadores. Além disso, quando invadiam a terra dos povos indígenas, os homens das aldeias eram mortos, e o mercado da exploração sexual de crianças e adolescentes indígena expandia.
As crianças pobres, órfãs e abandonadas eram denominadas pelos juízes e autoridades, como: desvalidas (sem valor), indicando o total desinteresse social nelas. A crueldade e insegurança, contra a infância, perpetuaram-se por vários anos, especialmente, por meio da “Roda dos expostos”. Em Portugal e no Brasil, destinada aos órfãos e filhos da pobreza, recebia também os filhos “indesejáveis” e expurgados pela elite social, “filhos proibidos”, frutos de relações ilícitas, de mães jovens e solteiras da nobreza. A mortalidade infantil ali era enorme, sendo registrada em 1850, a morte de quase 82% dos bebês internos, devido à falta de cuidados, higiene e carinho. Em 1869, o número de crianças depositadas nas Rodas, instaladas aos muros das instituições religiosas, intensificou-se, pois, alugavam-se, ali mesmo, as mães (escravas) como amas-de-leite. Sempre por detrás da desumanização infantil, há um interesse financeiro escuso.
Foram anos infindos de violações de direitos, trabalho escravo, abusos sexuais, abandonos e descaso da sociedade e do Estado, para os considerados “Pequenos Adultos”. Até que essas crianças inocentes e desprotegidas, em 1924, ganharam a primeira lei protetiva, popularmente conhecida, como: “Código Mello Mattos”, gêneses do conhecido “Código de Menores”, sendo esse o instrumental jurídico para nossa proteção, quando ainda éramos crianças. Internar crianças para educá-las, era uma prática muito difundida no século XIX, contudo, muitos internatos-escolas, eram internatos-prisões, havendo diferenças, exorbitantes, entre os internatos da elite e os internatos dos “desvalidos”. Até 1990 vigorou o recolhimento e internamento compulsório de “menores” (crianças e adolescentes).
A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, finalmente, com o artigo 227 é assegurado à criança e ao adolescente, com “absoluta prioridade” os direitos humanos fundamentais da vida, saúde, respeito, liberdade, dignidade, protegendo-as de toda negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Com esse pontapé inicial, hoje o Brasil possui uma das melhores legislações de proteção à criança e ao adolescente do mundo. Trata-se da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual se tornou o principal marco legal de garantia e “proteção” destes indefesos cidadãos, classificados como o “futuro da nação brasileira”. Todavia, a “chama da ignorância” ainda arde no Brasil, pois entre a teoria e a prática, jaz um profundo abismo.
Em Janaúba, entre as chamas da crueldade, no ato terrorista, em que o vigia enlouquecido incendeia crianças inocentes, além das vítimas, tivemos heróis bombeiros, policiais, moradores, dos hospitais etc. Destacou-se, porém, a professora Heley Abreu Batista, que teve mais de 90% do corpo queimado, na tentativa de salvar crianças, entre 02 a 06 anos de idade, que gritavam e choravam no terror das chamas. Heley não precisou de uma ordem legal, para entregar sua própria vida em defesa daqueles inocentes que ali estavam. Ela colocou em prática o maior mandamento ensinado por Jesus Cristo, que é o de dar a vida pelas suas “ovelhas”, deixando para todos nós, um legado de dedicação, coragem, comprometimento, altruísmo e amor.
Quando enfrentamos as chamas da ignorância, da indiferença e da crueldade, seremos capazes que agir como a professora Helley, focando as forças para salvar essas vítimas da insegurança e desumanidade, praticada pelos que ignoram e negam direitos às crianças e aos adolescentes. Precisamos enfrentar o antagonismo da prática: enquanto retiram ou contratam seguranças psicopatas para as escolas, canalizam as verbas públicas escolares para saquear a inocência dos pequeninos com ideologias impostas, com a erotização infantil, sobre o manto da “cultura”, da “intelectualidade” e de uma pseudo-liberdade.
Torcem o direito e a justiça, sentenciando-as a um futuro incerto e duvidoso, no contrassenso, ainda levantam a bandeira da redução da maioridade penal, como solução definitiva para os problemas da segurança pública nacional; mesmo sabendo, que tal política não funcionou em nenhum país do mundo onde foi implantada. Sentenciam à morte milhares de crianças e adolescentes, que esperam ter um futuro, nas periferias, nas áreas rurais, nos canaviais e nas aldeias. Nosso maior patrimônio é empurrado para o analfabetismo, miséria, exploração do trabalho, drogas, prostituição, reproduzindo a crueldade dos erros do passado.
Devemos cobrar políticas eficazes de proteção ao direito da criança e do adolescente, ao invés de culparmos o Estatuto da Criança e do Adolescente pelo aumento da violência. Precisamos parar, literalmente, de “descobrir” a criança, tornando-a ainda mais vulnerável à crueldade desumana, negando-lhe humanidade e proteção, assim como “descobriram” o Brasil. O país ainda não consegue entender que a criança, não é só futuro da nação, mas, sim, o PRESENTE (dádiva) a ser protegido por todos. Como diz o filósofo: “O passado é história, o futuro é um mistério, mas o presente é uma dádiva!”.
Por fim, como a moda agora é dizer: #somostodosjanaúba#, acrescento também que #somostodoshelley#, ou #somostodosculpadosouinocentes#???
Esequiel Roque do Espírito Santo é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB Rondônia.