Certas leis, por seu viés ideológico, transcendem o universo dos especialistas e merecem a atenção de toda a cidadania. É o caso da Medida Provisória 685, que obriga o contribuinte a declarar à Receita Federal as operações que lhe tenham gerado economia tributária, quando desprovidas de outra motivação econômica (“extratributária”) ou revestidas de forma jurídica não usual.
A regra mira os atos lícitos praticados pelo particular, dentro da liberdade negocial própria ao capitalismo, com o intuito de reduzir a carga fiscal a que está submetido. Tudo às claras, sem meias-palavras, pois o respeito devido pelo Fisco ao planejamento tributário decorre do princípio constitucional da legalidade.
De fato, tributar quem não realizou o fato gerador definido em lei – mas ato diverso, ainda que com efeitos similares – é tributar sem lei, por mera analogia. Se o planejamento se faz à luz do dia, quais os problemas com a regra que determina a sua comunicação ao Fisco?
Primeiro, a deslealdade. Sabe-se que a Receita Federal, fazendo pouco da legalidade estrita, autua as operações em que ocorre qualquer das circunstâncias listadas na medida provisória. Vale dizer, desconsidera todos os planejamentos dignos deste nome, só admitindo as reduções de tributos que consistam em efeito acidental e quase indesejado das decisões empresariais do contribuinte.
Trata-se, portanto, sob a capa de uma relação de transparência e confiança com o Fisco, do dever do contribuinte de preparar a própria autuação.
Segundo, a extrema indeterminação. Nos últimos anos, os juristas que admitem a tributação por analogia – pois eles existem! – e a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais têm-se debruçado sobre os termos empregados na medida provisória, sem chegar nem perto de um consenso sobre o seu significado.
Como, então, exigir-se do particular que identifique a existência daquelas situações, para saber se deve ou não declarar a sua operação?
Mas o pior está por vir: a falta de declaração, quando devida, ou a omissão nesta de algum elemento essencial – qualificação que também dá margem a enorme subjetivismo – são tratadas como “omissão dolosa”, “com intuito de sonegação ou fraude”. As consequências são a exigência do tributo, com multa de 150%, e a denúncia do contribuinte por crime de sonegação.
Omitir a declaração de um ato lícito (o planejamento), quando a lei a exige, sem dúvida constitui infração que poderia ensejar uma multa. Mas não torna exigível tributo cujo fato gerador foi licitamente evitado, porque tributo não é pena. E muito menos equivale a sonegação, pois não se sonega tributo inexistente.
Pela nebulosidade dos comandos e pela dureza das penalidades, a intenção da medida provisória fica clara: aterrorizar os contribuintes, para que evitem toda economia fiscal, como se houvesse um dever de, ante alternativas igualmente lícitas, escolher-se sempre a mais onerosa.
A norma subjuga o cidadão ao Estado e impõe-lhe obrigações de forma vaga, lançando-o na insegurança; nega a sua liberdade de organização econômica, desprezando a opção da Constituição pelo capitalismo; ofende o seu direito de ser tributado apenas na medida da lei; e transforma o tributo em sanção pela falta de comunicação de fato gerador inexistente, que ademais criminaliza.
O destino certo da MP é a rejeição pelo Congresso Nacional ou a invalidação pelo Judiciário.
IGOR MAULER SANTIAGO, advogado tributarista, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados