Nesta semana participei de um animado debate sobre a influência do cinema na formação jurídica dos profissionais do direito. Cada um dos participantes escolhia um filme e explicava a todos como o aplicou em algum caso defendido ou até como inspiração de tese. Não faltaram filmes e exemplos, destacando-se: Doze Homens e uma sentença (1957), Kramer vs. Kramer (1970), O Advogado do Diabo (1977), A testemunha (1985), A firma (1993), Filadélfia (1993), Um sonho de liberdade (1994), O Cliente (1994), O informante (1999), Hurricane – o Furacão (1999), Erin Brockovich: Uma mulher de talento (2000), O Mercador de Veneza (2004) e Terra Fria (2005). Eu ia escolher o imperdível Amistad (1997), quando me lembrei de que já tinha praticado a estratégia utilizada pela advogada Jennifer Park, no filme a Ira dos Anjos (1983).
E antes que esperem que eu revele aqui as partes narradas no debate, esclareço que a minha alma de cinéfilo me impede de praticar um spoiler. Mas devo contar a estratégia que fora vencedora, baseado no fantástico filme Tempo de Matar (1996). Incorporando o advogado Jake Tyler Brigance, quando defendia Carl Lee da acusação de homicídio e de lesões corporais graves, em razão de tiros deferidos contra os assassinos e estupradores de sua filha. E também aqui encerram os comentários sobre o filme dirigido por Joel Schumacher.
Pois bem! Cuidará esta crônica da narrativa vencedora, como ela fora posta pelo participante do nosso colóquio cinéfilo-jurídico. Pediu-nos ele que fechássemos os nossos olhos e pensássemos em algum órgão público, não importando a esfera ou o tamanho. Pediu, ainda, que imaginássemos como seria a nossa reação jurídica se os fatos narrados fossem verdadeiros e quais medidas judiciais seriam cabíveis. Ainda explicando a necessidade dos olhos cerrados, solicitou a nossa concentração e começou a contar a história aqui transcrita:
– Imaginem um órgão público que sempre foi respeitado por sua coerência e zelo com a coisa pública, sendo paradigma para todo o Brasil – instigou o narrador. – Agora pensem que para ele, sem qualquer pré-aviso, um dos seus integrantes propusesse e tivesse aprovado uma resolução extinguindo oitocentos e vinte e cinco (825) cargos efetivos, preenchidos pelo constitucional, impessoal e igualitário concurso público.
– Certamente queriam economizar, o que seria coerente – respondeu um dos ouvintes, sem abrir os olhos em sua viagem interpretativa.
– Calma, não opinem agora! Ainda fiquemos na imaginação – seguiu, impávido, o narrador. – No mesmo ato, o proponente sugere criar oitocentos (800) cargos comissionados para as mesmas atividades, agora preenchidos pelo livre critério pessoal do gostar, sem observar as cotas para as pessoas com deficiência ou mesmo as recém decididas contas sociais…
– Aí este órgão não seria sério! – interrompeu outro participante, agora com um argumento jurídico. – Assim a sua premissa inicial estava falsa.
– Ainda não acabei todo conteúdo da proposta – ouviu-se o sorriso alto do narrador. – Os valores desses novos cargos e como seriam preenchidos não seriam observados por critérios fixados em lei, mas por normas criadas pelo próprio órgão, sem qualquer controle externo. Agora, ainda sem abrir os olhos, pensem como todos reagiriam.
– Eu não deixaria passar nenhum projeto legislativo nesse sentido, pois é inconstitucional – disse o primeiro. – Acho até que nenhum parlamento iria aprovar, mesmo porque não iam querer abrir mão de debater valores e critérios futuros. Eles já foram proibidos de agir assim. Não vão permitir que outros façam.
– Eu mobilizaria a sociedade e a entidade sindical deles – complementou outro. – O concurso público é muito importante para a lisura do cargo público, assim como a política de inclusão social pelas cotas.
– Eu levaria a questão para a OAB – registraram algumas vozes que pertenciam ao lembrado órgão de classe.
– Eu procuraria os promotores e procuradores do Ministério Público local – disseram, coletivamente, a maioria das vozes, em argumentos que se assemelhavam. – Eles têm atuado muito em casos como esses. Eles já ingressaram com milhares de ações contra vários governantes municipais, estaduais e federais que tentaram esta manobra ofensiva. Eles têm experiência em ação civil pública e não perdoam a farra com dinheiro público. Eles sempre defenderam os grupos vulneráreis, não deixaram que castas de amigos substituam os que efetivamente merecem ser protegidos. Eu confio na atuação do Ministério Público.
Eis que, encerrando o debate, com pausada voz de narrador trailer de filme hollywoodiano, triunfante na escolha do roteiro adaptado, traça o seu grand finale:
– Luz! Ação! Abram os olhos! Eu estou falando do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A coerência sumiu.
Cezar Britto é advogado do escritório Cezar Brito Advogados Associados, escritor e autor de livros jurídicos, romances e crônicas.