O assassinato de Marielle Franco é uma tragédia.
Somos o país com o maior número de homicídios no mundo. Toda vida é importante e não podemos nos conformar com a perda de nenhuma.
A corrupção sistêmica e a violência desenfreada estão destruindo o país.
A morte de Marielle fere de morte a república.
Da tortura e morte de Cláudio Manuel da Costa, na Casa dos Contos, em Ouro Preto, em julho de 1789, à execução de Vladimir Herzog, em 1975, pelos mesmos meios, na sede do DOI/CODI em São Paulo; do assassinato de Chico Mendes, em 1988, à execução da juíza Patrícia Acioli no mesmo Rio de Janeiro, em 2011; todos esses casos entraram para a nossa história como símbolos de uma espécie de violência que mira no individual para acertar no coletivo.
A vida social como a entendemos hoje nasceu há muito tempo – entre o ocidente e o oriente, entre as pequenas cidades de tradição helênica (hoje, a Grécia, Macedônia e etc.) e as pequenas cidades na Ásia menor (hoje, na Turquia). O fundamento desse projeto era bem simples: as pessoas poderiam se encontrar e usar a palavra para interagir, divergir, concordar e solucionar seus problemas.
O uso livre da palavra dá sentido à existência da nossa civilização. Traduz, por si mesmo, o modo de vida da nossa interação social.
Mas o Brasil é um país muito violento. Desde o começo. Aqui, o exercício da liberdade política é capital para os mesmos poucos de sempre.
Marielle impôs à própria vida a missão mais importante de todas: em uma sociedade de massas – mais de 200 milhões de pessoas; algo com o que nenhum pensador grego poderia ter sonhado – ela aceitou as regras do jogo. Seguiu o caminho proposto pelo pacto civilizatório. E foi executada a tiros no exercício da função, em um estado sob intervenção militar justamente na segurança pública. Os tiros na cabeça que ela levou equivalem ao tiro na boca que Martin Luther King levou em Memphis, em abril de 1968; aos tiros que Bob Kennedy levou na cabeça 2 meses depois.
O assassinato político não é invenção nossa. Mas tem sempre o mesmo significado. A mesma urgência. É uma ameaça que afirma o interesse de destruir o que restou de nossa civilidade. Ou assumimos a urgência que o tempo atual requer para evitar que isso aconteça, ou o que sobrou das nossas esperanças na reabertura democrática serão sepultadas de vez.
A execução de Marielle guarda, contudo, e ainda, uma particularidade dentro dessa longa história de afrontas: mulher, negra, de origem pobre e humilde e defensora dos direitos humanos, ela dava forma à substância da luta de muitos que jamais puderam falar. Era relatora da Câmara Municipal para monitorar a intervenção; era a voz de grupos marginalizados que jamais poderiam ocupar uma tribuna central para contar suas histórias de sofrimento; para pedir por justiça.
A linguagem dos direitos humanos, os objetivos por trás da ideia, os mecanismos que materializam o sonho, tudo junto representado por centenas, milhares de pessoas no país afora, de todos os grupos sociais, foram atingidos. Esse homicídio é um capítulo primordial na obsessão que tomou conta do país para agredir a ideia de direitos humanos e, claro, para nos intimidar.
Civilização e direitos humanos são a mesma coisa. Não existe república sem liberdade para usar a voz que representa aqueles que estão mais longe do poder. Os que utilizaram a tragédia para agredir ainda mais a memória de Marielle fazem parte de uma miríade de ignorantes que vivem na polis (cidade) mas não sabem o que significa viver na polis – e por isso, contribuem para que ela desapareça.
As reações nas redes sociais por parte de pessoas que, por maldade ou ignorância, festejaram a morte da Marielle foram chocantes. Quantos compreendem que seus próprios direitos básicos estão em jogo quando aceitam ofender quem se propõe a defendê-los?
Essa contradição precisa ser enfrentada e nós seguiremos adiante para cumprir essa tarefa. Os direitos humanos são para todos.
Mas, entendam, vocês que escolheram o caminho da agressão à memória e ao trabalho de Marielle, não podemos permitir que vocês ocupem e destruam a praça! Nós iremos multiplicar nossos esforços para que a ideia prevaleça, e nós vamos lutar para que o exemplo das muitas Marielles que morrem todo ano neste país transforme de uma vez por todas a nossa vida política. Nem um passo atrás!