No papel de guardião da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a decidir sobre um aparente paradoxo: é possível uma norma constitucional ser inconstitucional? Foi exatamente essa a controvérsia veiculada nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 815/DF, ajuizada pelo governador do estado do Rio Grande do Sul em dezembro de 1992 e relatada pelo ministro Moreira Alves. Será aqui trazido, ao lado da controvérsia da inconstitucionalidade de normas constitucionais originária, o controle de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal sobre emendas à Constituição, manifestação típica do Poder Constituinte derivado.
O debate não era inédito, tendo surgido ao final de década de 1950, quando a Alemanha divergia acerca da legitimidade de uma lei fundamental redigida e promulgada por uma assembleia constituinte cujo protagonismo coube não ao povo alemão, mas ao governo aliado de ocupação[1]. Há mais de 60 anos de sua vigência, a Lei Fundamental de Bonn hoje é referência no Direito Constitucional contemporâneo, sendo responsável pela consolidação de um patriotismo constitucional comprometido com a intangibilidade dos direitos fundamentais. Entretanto, quando da sua elaboração, a falta de legitimidade do processo suscitou controvérsias devido à ausência de uma assembleia representativa ou de uma consulta popular.
Nesse contexto, o professor Otto Bachof, da Universidade de Tubingen, faria história ao fazer tal questão: seria possível que normas constitucionais fossem inconstitucionais por violar um princípio jurídico absoluto ou o próprio sistema interno do texto, promovendo assim uma modificação substancial de seu conteúdo? Sua preocupação era livrar o texto constitucional de dispositivos que contrariassem preceitos fundamentais de justiça, cujo fundamento estaria no Direito Natural. Sendo o povo titular do Poder Constituinte, o texto deveria refletir o sentimento de justiça enraizado em cada membro da coletividade[2].
Em crítica aberta aos teóricos adeptos do conceito formal de Constituição, Bachof expõe que a Constituição será válida — entendida enquanto legítima — tão somente no caso de o legislador considerar “os ‘princípios constitutivos’ de toda e qualquer ordem jurídica e (…) atender aos mandamentos cardeais da lei moral, possivelmente diferente segundo o tempo e lugar, reconhecida pela comunidade jurídica, ou, pelo menos não os renegar conscientemente”[3]. Portanto, a norma originária do texto que fosse incompatível com norma constitucional superior, com a “mudança de natureza” de normas constitucionais ou com o Direito Supralegal recebido na Constituição, seria afastada. Se violar princípios não escritos conformadores do sentido do texto, o Direito Constitucional consuetudinário e o Direito Supralegal não positivado, também poderá sê-lo.
Assim como o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no acórdão III ZR 153/50 de março de 1951, que decidiu pela impossibilidade do controle de constitucionalidade sobre norma constitucional originária a partir de outra norma constitucional originária, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 815, também rechaçou a possibilidade de inconstitucionalidade das normas constitucionais originárias[4]. Hoje, a doutrina de Otto Bachof presta-se à reflexão sobre a interlocução entre o Direito Positivo e o Direito Natural, não encontrando respaldo junto aos tribunais constitucionais.
Na inicial, questionava-se a constitucionalidade do artigo 45 da Constituição[5]. Mais especificamente, o governador do Rio Grande do Sul requereu a inconstitucionalidade tão apenas das expressões “para que nenhuma daquelas unidades da federação tenham menos de oito ou setenta deputados”, constante no parágrafo primeiro, e “quatro”, por sua vez prevista no parágrafo segundo. A tese apresentada ao Plenário do Supremo era a de que a taxatividade de quatro deputados para cada território e a variabilidade de oito a 70 para as unidades federativas importaria em um tratamento não só díspar, como também desproporcional, na medida em que eleitores dos estados do Sul e do Sudeste estariam sub-representados na Câmara dos Deputados se seus representantes fossem selecionados na forma do artigo impugnado. Explique-se.
A Constituição Federal de 1988 adotou a regra da proporcionalidade na representação — mas fez questão de, em atenção à igualdade entre as entidades da federação, determinar um número máximo de deputados por estado. Cuida-se de uma característica da história institucional brasileira, fazendo-se presente em todas as legislaturas eleitas no Império e na República. O estado do Roraima, que possui 450.470 habitantes de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2010, elege um deputado para cada 56.309 pessoas, enquanto o estado de São Paulo, cuja população era de 41.262.199 habitantes em 2010, possuía um deputado para cada 589.459 paulistas. Em outras palavras, um deputado por São Paulo representa um contingente populacional superior a população inteira de Roraima[6].
Voltando à inicial, o autor também afirma que as distorções representativas impactam relevantes questões discutidas no Congresso Nacional, como em sua Comissão Mista de Planos Orçamentos Públicos e Fiscalização, que é responsável pela análise e parecer da proposta orçamentária da União. Para o governador do Rio Grande do Sul, tais questões seriam potenciais fontes de conflitos, sendo dever do poder público “exaurir esforço na extirpação do vício para reinstaurar o encontro da nação consigo mesma”.
Assim, ambas as expressões colocadas nos parágrafos do artigo 45 do texto afrontariam os princípios constitucionais superiores da igualdade, previsto no caput do artigo 5º, da igualdade do voto, previsto no caput do artigo 14, da soberania popular, consagrado no parágrafo único do artigo 1º, da cidadania, cristalizado no artigo 1º, inciso II, e, por fim, da democracia, positivada no artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Indo além, por “discriminar o valor político dos brasileiros”, as expressões enfraqueceriam a federação, elevada à condição de cláusula pétrea no artigo 60, parágrafo 4º, inciso I.
A Advocacia-Geral da União afastou completamente o pedido, afirmando que o sistema constitucional brasileiro não admitia hierarquia entre normas constitucionais, inclusive no que diz respeito às cláusulas pétreas, que não podem ser modificadas nem mediante propostas de emendas à Constituição. Para a AGU, todos os dispositivos constitucionais estariam situados em idêntico patamar. Em igual sentido foi o parecer da Procuradoria-Geral da República, que argumentou pela irrelevância da distinção “entre normas forma e materialmente constitucional, por possuírem o mesmo valor, a mesma força, não se podendo sustentar a existência de normas constitucionais inconstitucionais”.
Instruída, a ADI 815 foi submetida ao julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, cujos integrantes seguiram por unanimidade o voto do ministro Moreira Alves, para quem seria impossível declarar a inconstitucionalidade de norma originária em face de uma outra norma originária em um modelo de Constituição rígida. Para tanto, baseia-se nos ensinamentos de Francisco Campos, que “repugna, absolutamente, ao regime de Constituição escrita ou rígida a distinção entre leis constitucionais em sentido material e formal; em tal regime, são indistintamente constitucionais todas cláusulas constantes da Constituição, seja qual foi o seu conteúdo ou natureza”[7].
De acordo com relator, sendo todas as normas originárias decorrentes da manifestação do Poder Constituinte originário, não haveria sentido em valorar distintamente umas em detrimento de outras. Do contrário, estaria sendo vulnerado o princípio da unicidade da Constituição, que informa a interpretação constitucional da relevância do contexto e da congruência do sistema constitucional como um todo. Extirpando quaisquer dúvidas por acaso existentes, a decisão do Supremo Tribunal Federal no bojo da ADI 815 alinhou expressamente a Constituição Federal à tradição da história constitucional brasileira em rejeitar diferenciação entre as normas originárias — ainda que não o faça expressamente, a exemplo da Constituição de 1824, cujo artigo 128 estabelecia ser “só constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais do cidadão. Tudo que não é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”.
Em que pese essa decisão a reforçar a unicidade da Constituição Federal de 1988, o STF já chegou a entendimento diverso quando julgou da ADI 939/DF[8], proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio contra à Lei Complementar 77/93. Nessa ocasião, decidiu-se pela inconstitucionalidade do artigo 2º, parágrafo 2º, da Emenda Constitucional 3, sob o entendimento de afrontar o princípio federativo ao autorizar a quebra da imunidade recíproca entre União, estados, Distrito Federal e municípios. O ministro Celso de Mello defendeu que “ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar para que essa realidade [direitos e garantias fundamentais] não seja desfigurada”. Para Virgílio Afonso da Silva, a decisão do STF na ADI 939 marca a consolidação do modelo brasileiro de controle de constitucionalidade enquanto um modelo “ultraforte”[9]. Na medida em que um modelo considerado forte atribui ao tribunal a análise de adequação entre legislação infraconstitucional e constitucional, é razoável taxar o modelo brasileiro como “ultraforte”, por ser o tribunal constitucional competente para fiscalizar a constitucionalidade do Poder Constituinte derivado.
À nível legislativo, é indicativo da existência de valorações distintas dentro do corpo do texto constitucional a existência de remédio processual apto a proteger e promover seus princípios mais sensíveis: a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Já à nível doutrinário, muitos juristas defendem, em havendo colisão entre normas em um dado caso concreto, uma exegese atenta à respectiva relevância de cada um dos direitos em conflito, a exemplo do ministro Gilmar Mendes[10]:
É possível que uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passe pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre os direitos fundamentais. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando, também, a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico. Uma valoração hierárquica diferenciada de direitos fundamentais apenas é admissível em casos especialíssimos.
Por ora, a tese de Otto Bachof não encontra eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — ao menos não no que diz respeito às normas constitucionais originárias. Como visto, o Supremo admite a inconstitucionalidade de propostas de emenda à Constituição quando restarem violadas as cláusulas pétreas previstas no artigo 60, parágrafo 4º, da Carta. Porém, enquanto não houver um posicionamento claro, conferindo diferentes valores às normas constitucionais originárias, todas deverão ser consideradas igualmente, obrigando todos os juristas e jurisdicionados em igual medida. Tão somente em casos excepcionais, e tão somente dentro dos limites da causa ali discutida, poderá o Supremo sopesar os direitos para aplicar um em detrimento do outro. No entanto, fora dos limites subjetivos da causa, o Direito Constitucional aplica-se para todos com igual força vinculante.