Quando não há mais espaço para diálogo no Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal é chamado pelos parlamentares para agir como garante das regras democráticas e árbitro das disputas políticas. No Mandado de Segurança 24.831/DF, um grupo de senadores submeteu à apreciação do Supremo a omissão da Mesa do Senado em instalar comissão parlamentar de inquérito, mesmo observado o quórum mínimo de subscritores ao pedido. Estava em questão, portanto, o exercício do direito à oposição política.
Prevista no artigo 58, parágrafo 3º, da Lei Fundamental[1], a comissão parlamentar de inquérito constitui uma das mais importantes ferramentas de fiscalização do Poder Legislativo ao permitir, quando da apuração de um fato determinado[2] por prazo certo[3], a coleta de informações que irão auxiliar os parlamentares a “fiscalizar e controlar, diretamente ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta”, na forma do artigo 49, inciso X, da Constituição Federal de 1988. Sua criação será precedida do requerimento de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, na hipótese de ser uma CPI no âmbito de uma das Casas, ou de um terço dos membros do Congresso, no caso de uma Comissão Parlamentar Mista.
No caso sob apreciação do Supremo, a proposta de instalação foi encaminhada à Mesa por 39 Senadores — ou seja, mais de um terço dos integrantes da Casa. Contudo, arguiu-se no MS 24.831/DF, os líderes dos blocos de sustentação ao governo não atenderam à solicitação do presidente para indicar seus representantes na comissão, inviabilizando os trabalhos investigativos. A conduta dos líderes majoritários foi levada à consideração do presidente do Senado, que se recusou a tomar providências ao argumento de que não lhe eram facultados pelo Regimento Interno poderes para contornar a desídia, sendo de responsabilidade exclusiva dos líderes dos partidos políticos a indicação.
Sustentando violação ao direito líquido e certo à instalação da comissão parlamentar, já que contemplado o quórum mínimo constitucional, os senadores subscritores do pedido impetraram o writ no Supremo Tribunal Federal fundamentando-se no reconhecimento do direito à oposição política e da prerrogativa de investigação parlamentar pelo sistema constitucional brasileiro. No mérito, requereu a concessão da segurança para determinar a aplicação analógica do Regimento Interno da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional a fim de ser instalada a comissão com a nomeação de todos os seus membros.
A oposição política é intrínseca ao espírito da democracia[4]. A proteção e a promoção da crítica, da fiscalização e da alternância políticas concretizam outras garantias que são tão importantes quanto o direito à oposição, a exemplo da liberdade de opinião, da livre manifestação de pensamento e da liberdade de associação. Exercido não só mediante os partidos políticos, mas também os movimentos sociais, os instrumentos de democracia semidireta e os writs constitucionais, a garantia de oposição política concretiza a ordem democrática e o pluralismo político — ambos consagrados pelo artigo 1º da Constituição de 1988 como sendo princípios fundamentais República Federativa do Brasil[5].
Mesmo que a Lei Fundamental brasileira não faça menção expressa à oposição política, ao contrário da Constituição portuguesa de 1976[6], essa garantia encontra-se protegida indiretamente em vários dispositivos relacionados ao Poder Legislativo, como no caput do artigo 47 e parágrafo primeiro do artigo 58[7]. Na esfera parlamentar, os regimentos criam a figura do líder da minoria e legitimam a atuação do bloco minoritário ao lado do bloco majoritário. No caso da Câmara, por exemplo, foi instituído o Colégio de Líderes, composto dos líderes da maioria, da minoria, dos partidos, dos blocos e do governo.
O presidente do Senado Federal, ao prestar as informações enquanto autoridade coatora, levantou preliminar de incognoscibilidade do writ alegando que a controvérsia versava sobre interpretação do Regimento Interno da Casa, sendo ato interna corporis infenso à interferência do Poder Judiciário. No mérito, afirmou que seria inaplicável o Regimento Interno de outra Casa Legislativa e que o presidente não teria competência regimental e legal para nomear os membros faltantes. Acerca da possibilidade do controle judicial da ato do Senado, sua Presidência sustentou que seria infenso à decisão judicial alterar ou extirpar as competências preestabelecidas e que inexistiria ilegalidade ou abusividade na interpretação dada às disposições do Regimento Interno do Senado Federal.
Segundo o procurador-geral da República, inobstante a impossibilidade de a maioria no Congresso Nacional frustrar o exercício da prerrogativa investigatória pela minoria, não deveria o writ ser conhecido em razão da ilegitimidade ad causam da Mesa do Senado, ao argumento que deveriam constar no polo passivo da demanda os líderes da maioria. Ainda que estes viessem a integrar a lide no futuro, o que veio a ocorrer após permissão do ministro relator, entendeu o representante do parquet que não caberia à Presidência do Senado indicar os membros da CPI na omissão dos líderes da maioria.
Os integrantes do Supremo Tribunal Federal, vencido o ministro Eros Grau, rejeitaram as preliminares para, no mérito, conceder a segurança pleiteada. Acompanharam o voto do relator, o ministro Celso de Mello, os ministros Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto e, por fim, Joaquim Barbosa.
A suposta impossibilidade de conhecer matéria interna corporis foi rejeitada pelo STF à alegação de que o mandado de segurança suscitava violação a direitos “impregnados de estatura constitucional”. Dessa forma, o Supremo estaria legitimado a intervir por ser de competência do Poder Judiciário, no exercício da judicial review, fiscalizar as condutas do Estado quando forem desrespeitadas a Constituição Federal e a legislação. Entendeu-se que a inércia dos líderes e do presidente configurou exercício abusivo de prerrogativa estatal porque transgressor do direito público subjetivo de minorias na Casa Legislativa. Para Celso de Mello, os atos interna corporis não devem ser praticados fora dos limites constitucionais que condicionam o exercício legítimo do poder.
Foi igualmente rejeitada a preliminar de ilegitimidade passiva do presidente do Senado. De acordo com o relator, seria de responsabilidade do presidente, na condição de órgão diligente da Mesa da Casa e até mesmo de garante da estabilidade do ato de constituição das comissões parlamentares de inquérito, viabilizar a organização e o funcionamento das comissões, adotando as providências necessárias para tanto, inclusive integrando as lacunas com a aplicação de dispositivos do regimento dos demais órgãos legislativos.
Ainda que a controvérsia nos autos girasse em torno da mora da maioria na indicação de representantes de sua bancada para compor determinada CPI, a questão constitucional a ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal era a constitucionalidade da inviabilização pela maioria do direito da minoria em instaurar e realizar a investigação parlamentar, ainda que satisfeitos as três exigências colocadas no parágrafo terceiro do artigo 58 da Carta: a subscrição do requerimento por um terço dos membros da Casa Legislativa, a indicação de fato determinado a ser apurado e a fixação de um prazo certo aos trabalhos. Todos os três foram satisfeitos pelos impetrantes.
Segundo o ministro Celso de Mello, a maioria não pode se utilizar de conduta omissiva para impedir o exercício do poder constitucional de fiscalização e investigação de ações dos órgãos, agentes e instituições do Estado. Cuida-se de uma garantia instrumental que a própria Constituição Federal outorga às minorias em reconhecimento à importância do direito de oposição política no Estado Democrático de Direito. Com apoio na doutrina de Pinto Ferreira[8], destacou ser da essência democrática a harmonia entre majority rule e minority rights.
A fim de não reduzir a democracia à categoria política-jurídica meramente conceitual, é necessário garantir em termos constitucionais os mecanismos que permitam às minorias o pleno exercício do direito fundamental à oposição, pelo que entendeu o ministro que o presidente do Senado Federal desrespeitou o direito público subjetivo dos impetrantes à instauração de inquérito, feito líquido e certo a partir do momento em que atendidos aos três requisitos constitucionais. Logo, concedeu segurança para determinar à Presidência do Senado a aplicação analógica do artigo 28, parágrafo 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, indicando ele próprio os nomes faltantes para compor a CPI.
Complementando o raciocínio de Celso de Mello, Ayres Britto afirmou ser democracia o governo da maioria quando garantidos todo os direitos da minoria, em homenagem ao pluralismo político. Gilmar Mendes, por sua vez, adicionou que o respeito incondicional às minorias parlamentares era pressuposto da legitimação da ordem constitucional.
No voto-vista, o ministro Eros Grau trouxe diversas questões prejudiciais. Em primeiro lugar, entendeu pela perda superveniente do objeto. Quando da impetração do mandado, já haveria transcorrido o prazo de 120 dias requisitados para o funcionamento da comissão. Assim, não teria sentido na designação de senadores para integrar comissão que não mais existiria. Além disso, foi do seu entendimento que o ato do poder público combatido pelo writ seria matéria interna corporis, sendo infenso ao Poder Judiciário imiscuir-se na intimidade de outro Poder. Terceiro, os impetrantes careceriam de direito líquido e certo porque inexistente regra regimental do Senado Federal que permitisse ao seu presidente colmatar a omissão dos líderes majoritários. Em quarto e último lugar, o ministro Eros Grau anotou que, por interpretação do artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição, os impetrantes poderiam reunir-se sem a presença dos representantes dos demais partidos, pois a criação da comissão parlamentar de inquérito pressuporia sua instalação.
O relator, fazendo contraponto à divergência, frisou o não exaurimento do prazo a que se refere o artigo 76, parágrafo 3º, do Regimento Interno do Senado, já que a criação da CPI não se daria na composição da comissão, mas, sim, na publicação dos atos decorrentes de sua criação. Esse raciocínio foi seguido pelo ministro Joaquim Barbosa, para quem a criação da comissão parlamentar de inquérito dá-se com a reunião do número das assinaturas e com a escolha dos órgãos diligentes: presidente e relator. In casu, o ato de instalação não teria se materializado em razão da omissão dos líderes.
Assim, o Supremo Tribunal Federal fez valer o estatuto constitucional das minorias para determinar a instalação da comissão parlamentar de inquérito, desfazendo as confusões entre princípio democrático e majoritário. Se presentes os três requisitos constitucionais necessários à instalação do órgão, configura-se direito público subjetivo da minoria que não está sujeito à conveniência e à oportunidade da maioria.
[1] § 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.