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Artigo: ‘O princípio constitucional democrático e os 50 anos do AI-5’, por Marcus Vinicius Furtado Coêlho

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Marcus Vinicius Furtado Coêlho

A democracia é, a um só tempo, elemento legitimador da constituição e princípio consagrado e tutelado pelo texto constitucional. A intensa participação dos mais variados setores da sociedade no processo constituinte por meio de apresentação das emendas populares é elemento legitimador da Carta Constitucional produzida. De outro lado, o diploma promulgado em 1988 estabelece topograficamente, já em seu art. 1º, caput, que a República Federativa Brasileira constitui-se em Estado Democrático de Direito. O preâmbulo da Carta também firma, inequivocamente, a vontade constituinte de estabelecer um Estado Democrático, destinado a assegurar os direitos fundamentais da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana, a cidadania,o pluralismo político, como fundamentos da República e a titularidade do poder pelo povo reforçam a primazia do princípio democrático na ordem constitucional. Princípio este que é densificado ao longo de toda a Carta, desdobrando-se em diversas normas principiológicas: soberania popular, renovação dos titulares de cargos públicos, sufrágio universal, liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades nas campanhas eleitorais, separação e interdependências dos órgãos de soberania, entre outros.

A resultante dessa escolha fundamental constituinte é que a democracia, na qualidade de princípio constitucional, informa a compreensão, a produção e a aplicação do direito positivo. É norma de natureza estruturante de toda a ordem jurídica, que fundamenta a organização do poder, orientando e limitando as formas em que pode, legitimamente, ser exercido.

O Supremo Tribunal Federal, ao longo dos trinta anos da Constituição, tem atuado em prol da defesa e efetividade do princípio democrático em diversos aspectos e desdobramentos. Na ADI 5016 a Corte assegurou o princípio da separação dos poderes, o princípio federativo e da repartição de competências:

Ementa: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. VIOLAÇÃO À COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA EXCLUSIVA DA UNIÃO (CF, ART. 21, XIX). AFRONTA AO ART. 225, §1º, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO. CONFIRMAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR. PROCEDÊNCIA. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. (ADI 5016 / BA – BAHIA. Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES. Julgamento: 11/10/2018 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação 29-10-2018)

A defesa do princípio democrático pelo STF também pode ser ilustrada na tutela da moralidade eleitoral e da igualdade de chances entre os partidos políticos, como ocorreu no julgamento da ADI 4617:

(…) 2. A regularidade da propaganda partidária guarda estreita conexão com princípios caros ao Direito Eleitoral, como a igualdade de chances entre os partidos políticos, a moralidade eleitoral, a defesa das minorias, e, em última análise, a Democracia. 3. O princípio da igualdade de chances entre os partidos políticos é elemento basilar das mais modernas democracias ocidentais, a impedir o arbitrário assenhoramento do livre mercado de ideias por grupos opressores (JÜLICH, Christian. Chancengleichheit der Parteien:

zurGrenzestaatlichenHandelnsgegenu¨berdenpolitischenParteiennachdemGrundgesetz. Berlim: Duncker&Humblot, 1967. p. 65; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 320). 4. As questões relativas à propaganda partidária não são meras contendas privadas, avultando o caráter público da matéria diante do art. 17 da Constituição, que estabelece parâmetros claros para o funcionamento dos partidos, resguardando a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana, dentre outros preceitos. (ADI 4617 / DF. Relator(a): Min. LUIZ FUX Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: 12-02-2014)

A tutela da democracia, como cediço, não se limita apenas à garantia da vontade popular, mas também em assegurar, com máxima efetividade, os direitos fundamentais da pessoa humana e a igualdade material, para além de uma igualdade meramente formal. Na ADC 41, o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014, que instituiu política afirmativa de inserção da população negra nos cargos e empregos públicos:

1. É constitucional a Lei n° 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, por três fundamentos. 1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator “raça” como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma “burocracia representativa”, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o acesso de negros à educação superior não torna a reserva de vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. (ADC 41 /DF. Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO
Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: 17-08-2017)

A centralidade assumida pelo princípio democrático na Constituição de 1988 é também uma resposta histórica e jurídico-política aos arbítrios perpetrados ao longo do regime militar, instaurado em 1964, no país. No dia 13 de dezembro completa-se 50 anos da edição do Ato Institucional nº 5: o ato que instaurou o período mais violento e antidemocrático dos vinte e um anos de ditadura cívico-militar brasileira.

Se decretado hoje um novo AI-5, o presidente da república poderia fechar o Congresso Nacional e os legislativos estaduais e municipais, passando ele próprio a legislar em flagrante violação ao princípio da separação dos poderes[1].

Além disso, ao presidente estaria facultado, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos e cassar mandatos dos parlamentares eleitos pelo povo, sendo esses proibidos de fazerem qualquer manifestação sobre política[2].

As garantias constitucionais e legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade estariam suspensas, o que permitiria que o chefe do Executivo Federal, mediante decreto, demitisse ou removesse magistrados que julgassem qualquer ação contra ele, procuradores que investigassem integrantes do governo em casos de corrupção e qualquer funcionário público que atuasse contra os interesses do governo.

A garantia constitucional do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular seria suspensa e o Judiciário, impedido de apreciar “todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos[3]”.

Entre 1964 e 1985, e segundo o III Programa de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicado em 2010, estima-se que 20 mil brasileiros tenham sido submetidos à tortura. Nesse mesmo período, em torno de 434 cidadãos foram mortos ou dados como desaparecidos, 7.000 acabaram exilados e 800 foram julgados como presos políticos. A consequência foi a produção de uma sociedade amedrontada, impedida de atuar como oposição ou de manifestar-se politicamente[4].

É urgente que o povo brasileiro abandone a crença em um poder ou uma força messiânica, salvacionista que, sozinha, conseguirá pôr fim às nossas profundas desigualdades sociais, à corrupção sistêmica que enfrentamos – nos setores público e privado – ou garanta a retomada do crescimento econômico. Isso por uma razão simples: não existe fórmula mágica para solucionar essas questões que são complexas e requerem escolhas políticas – que inevitavelmente agradarão a alguns e desagradarão a outros.

O que há é a democracia, em permanente processo de amadurecimento, com avanços e retrocessos. Assusta o fato de, em momentos de crise, como a que se vive hoje no país, a solução imaginada por alguns seja o retorno de um governo militar, para impor “ordem e disciplina” à nação. A última vez que o país experimentou essa solução, ficou submerso numa ditadura que durou vinte e um anos e que custou ao povo brasileiro seus direitos civis, políticos, sociais, e, para muitos, sua integridade física ou sua própria vida. Isso sem mencionar como até hoje se luta para superar a cultura do autoritarismo e do personalismo, ainda fortemente arraigada nas instituições.

Mas se isso já faz tanto tempo, se hoje não existe o risco de um golpe militar, com tanques nas ruas, por que se preocupar com isso? De fato, é improvável que hoje seja editado um decreto aos moldes do que foi o AI-5 em 1968. Isso seria flagrantemente inconstitucional e certamente não passaria pelo crivo do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, a pergunta a ser feita não é se seria possível, nos dias de hoje, a edição de um decreto desse tipo, mas sim, se seria possível, nos dias de hoje, retomarmos ao estado de violação de direitos equivalente ao que o Brasil viveu naquela época.

A Constituição pode ser corroída e os direitos nela insculpidos tornados sem efeito, na prática, ainda que não sejam expressamente revogados por decreto ou lei alguma. A execução sumária nas periferias, sobretudo da população negra e as práticas semelhantes à tortura nos presídios são exemplos de que não atingimos um estado de coisas plenamente democrático e constitucional.

As forças retrógradas e obscurantistas podem vir disfarçadas de democracia, travestidas de legalidade. O filósofo italiano Giorgio Agambem, autor do livro “Estado de exceção” assim alertava:

As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal[5].

Os tempos atuais estão insertos na pós-modernidade, pós-verdade e, porque não, pós-legalidade. O estado de exceção é uma ilegalidade dentro da legalidade. Uma ilegalidade que se justifica pela sua excepcionalidade para se combater um mal maior. O problema disso é que cassar opositores, prender “criminosos” – conceito elástico que pode variar para alcançar qualquer um que faça oposição ao governo, por exemplo -, censurar a imprensa, relativizar o direito de defesa, podem parecer medidas tentadoras quando estamos ocupando o poder e temos o comando dessas ferramentas. A questão é que nunca sabemos quando outro pode tomar esse lugar e a oposição sermos nós.

Não se pode admitir a flexibilização do Estado Democrático de Direito sob o pretexto de combater um mal maior. O mal maior é o próprio estado de exceção, é a própria relativização da democracia. Não há exceção plausível à democracia. Ela é o remédio para os seus próprios defeitos. Escolhas erradas tomadas democraticamente só podem ser revistas e corrigidas sob a batuta de um regime democrático.

A democracia é um processo em construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que se deve defendê-la radical e incondicionalmente. Só ela nos garante que, ainda que os governos eventualmente cometam erros, eles estarão sendo fiscalizados e avaliados sob o escrutínio dos cidadãos.

O dia em que os parlamentares não puderem exercer livremente seus mandatos, que a imprensa sofrer censuras, que os cidadãos não tiverem assegurado o seu direito de defesa, de reunião ou de livre manifestação, estaremos reeditando o AI-5, sem precisar de decreto, tanques nas ruas, nem nada.

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[1]Art. 2º – O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

[2]Art. 4º – No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

[3]Art. 11 – Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

[4] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Os 50 anos do AI-5. Lembrar para não esquecer. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2018/Os-50-anos-do-AI-5.-Lembrar-para-n%C3%A3o-esquecer Acesso em: 07.dez.2018.

[5]AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. [tradução de Iraci D. Poleti]. São Paulo: Boitempo, 2004.

 

Fonte da Notícia: Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente do Conselho Federal da OAB e atual presidente da Comissão de Estudos Constitucionais do CFOAB.

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