Circula nas redes e foi divulgado pelos jornais (aqui) manifesto assinado por mais de 100 promotores gaúchos e dezenas de outros estados contra a “bandidolatria” e o “democídio”. Do manifesto se depreende que o direito está dominado por ideologias ensinadas e praticadas por professores, juízes e advogados garantistas e de esquerda.
Este é um debate antigo, pré-liberal e é requentado a todo o momento. O Ministério Público nacional é composto por milhares de membros e os que assinam o manifesto representam apenas 1% do número de membros do MP em todo o Brasil. Portanto, não deveria nem ser respondido.
Mas, então, por que escrever sobre isso? Simples. Porque o manifesto vem assinado por agentes políticos do Estado que deveriam fazer o contrário do que estão pregando no documento. Explicarei isso, a seguir.
Quando entrei no MP, em 1986, depois de fazer mais de 20 palestras a favor da constituinte (eu já havia cursado mestrado) e já então me engajar na luta para que o Ministério Público tivesse as mesmas garantias da magistratura e se transformasse no ombudsman brasileiro, lembro-me que insignes promotores (cito apenas os do RS) como Claudio Barros Silva, Jarbas Lima, Ibsen Pinheiro e Paganella Boschi (auxiliados por um “promotor honorário” como Nelson Jobim) contavam nas palestras — e foram lutar no parlamento — o sonho de ter uma Instituição que fosse para além do promotor público e da fama de acusador sistemático. O novo membro do MP a exsurgir do processo constituinte não deveria ser simplesmente parte, e, sim, um tertius equidistante, que serviria para acusar o réu, defendendo a sociedade, mas também defender o réu, se fossem violadas a suas garantias e os seus direitos individuais. Basta ler os artigos da CF que tratam do MP.
Acreditei tanto nisso que recitei, na minha prova de tribuna, um “meme ministerial” da época, da lavra de Alfredo Valladão (que nasceu em 1873 e morreu em 1959). Os promotores signatários do manifesto deveriam ler o que já então, décadas antes da constituinte, dizia Valladão:
O Ministério Público se apresenta como uma figura de um verdadeiro Poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o “Espírito das Leis”, com segurança não havia sido tríplice se não quádrupla a divisão dos Poderes. Um órgão que legisla, um que executa, um que julga, devendo existir, também, um que defenda a sociedade e a lei ante a Justiça parta a ofensa de onde partir, é dizer, dos indivíduos ou dos próprios Poderes do Estado”.
“Parta a ofensa de onde partir…”. Vejamos. O mote do manifesto é: há garantias demais; os advogados e professores (e alguns juízes) são garantistas e proporcionam (e trabalham a favor) (d)a impunidade; há uma conspiração para que o novo Código Penal seja o Código da impunidade e deixe livre terroristas; desencarcerar é democídio e outras coisas desse gênero. Enfim, para resumir, tudo isso, no conjunto da obra, representaria aquilo que denominam de “bandidolatria”.
Vejamos algumas questões, como, por exemplo, a questão do encarceramento. O Supremo Tribunal Federal já declarou o sistema prisional como estando em Estado de Coisas Inconstitucional, exatamente porque o sistema é composto de masmorras medievais (palavras do ministro Peluzzo, quando presidente da corte). Aliás, quem não sabe que, além de masmorras, os presídios são controlados por facções criminosas e que o preso, ao ingressar, tem de escolher uma delas? Quem não sabe que juízes e membros do MP sabem que os presídios são incontroláveis e lá dentro há uma ditadura dos mais fortes sobre os mais fracos? O que dizer das rebeliões? Ademais, o que tem sido feito, efetivamente, para interditar as masmorras medievais? E o que tem sido feito para melhorá-las?
Quando Procurador de Justiça, fui o único — até hoje — a pedir a intervenção federal no Estado (29.5.2009), face ao péssimo estado das prisões e também em relação à suspensão da lei feito em processos judiciais. Sugeria intervenção para que fossem construídos presídios. Na época, uma facção havia “comprado” — contrato por escrito — a metade do presídio. Sem esquecer a denúncia do juiz que veio representando a Corregedoria Nacional do CNJ em visita ao Presídio Central de Porto Alegre, que teve que pedir autorização para o chefe do presídio. Observação: o chefe não era o diretor; era o chefe-mor das facções.
O Ministério Público, segundo a Constituição, deve ser imparcial e não se transformar em militante (tanto é que pode ser considerado suspeito ou impedido em processos). Não deve assumir um viés punitivista, colocando, como os signatários fizeram no referido manifesto, posição prévia contra qualquer garantia — eis que, para eles, garantias constitucionais são vistas como coisas de esquerdistas e bandidólotras (nas exatas palavras do manifesto, trata-se de um processo penal democida — aquele que extermina o povo). A pergunta, que já fiz outras vezes, é: por que o Ministério Público precisa de garantias iguais às da magistratura se se comporta, não como um magistrado, mas como parte, fazendo meramente um agir estratégico?
Ora, quem tem o direito — e, fundamentalmente, o dever — de fazer um agir estratégico é o advogado. Respeitemos o advogado. Pergunto: Os signatários do manifesto querem o quê do advogado? Que ele peça a condenação do seu cliente? E o que esperam dos professores? Querem que os professores ignorem o que de mais científico tem sido escrito pelos maiores juristas do mundo sobre garantias processuais-constitucionais, como Canotilho, Jorge Miranda, Dworkin, Ferrajoli, Kai Ambos, Roxim, Alexy, Monteiro Arouca (mais a plêiade de juristas brasileiros que se dedica à temática), e até gente de outras áreas, como Habermas e Agamben? Querem que falseiem dois mil anos de filosofia e as conquistas pós-Beccaria? É disso que se trata? É constitucional considerar culpado o réu até que ele, réu, prove o contrário? A propósito: a inversão do ônus da prova ainda ocorre em muitos fóruns e tribunais. Como disse Valladão — um homem do século XIX com a visão de século XXI — o MP deve agir, parta a ofensa de onde partir…!
Relembro que os signatários do manifesto já, de pronto, devem começar a fazer outro, agora contra um “novo membro” da ideologia dos bandidólatras, o presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, desembargador Manoel Erhardt, cuja manchete de sua entrevista ao ConJur é: “Prisão deve ser para quem comete crimes violentos e contra a administração”. Veja-se o “absurdo” dito pelo nosso colega de bandidolatria:
“Costumo dizer que diante da situação carcerária brasileira, a pena privativa de liberdade deve ser realmente destinada a pessoas que oferecem um risco à incolumidade dos outros, aqueles criminosos dos crimes violentos: estupro, latrocínio, esses crimes violentos. E também dos crimes contra a administração de maior gravidade, já que há todo um reclamo nacional para a punição desses crimes. Nos outros casos, eu acredito que se deve intensificar a aplicação das penas restritivas. É uma das formas de tentarmos reduzir esse encarceramento, que ao meu ver não é positivo…”.
Bingo. Diante da barbárie do sistema carcerário, eis uma opinião sensata do desembargador Erhardt. Ao que parece, ele não concorda com a tese de que desencarceramento mata. E eu poderia citar ministros do STF, do Superior Tribunal de Justiça, professores, advogados e membros do MP que pensam como o desembargador Erhardt e não concordam com o teor do manifesto. É evidente que gente perigosa deve ser presa. Mas não é qualquer um que deve ser preso. Nosso sistema (nosso modo de punir) faz furo na água. Seca gelo. Pagamos caro para um sistema em que o preso sai sempre pior do que entrou. Não é um péssimo “negócio”?
Por fim, apenas mais uma observação, além de lamentar a morte simbólica da tese de Alfredo Valladão, que na minha época era visto como ídolo do MP. Não é possível que os signatários acreditem nesta frase do manifesto, verbis: “Enfim, você pensa que eles querem te proteger, mas QUASE TODAS AS MEDIDAS SÃO PARA PROTEGER CRIMINOSOS E GARANTIR IMPUNIDADE” (as maiúsculas são do original — e os pronomes de tratamento também). Igualmente não acredito que os signatários acreditem que o projeto do CP dá “salvo-conduto a desordeiros e terroristas”. Forte a afirmação, não? E que história é essa de que os garantistas (e derivativos!) alegam que “os presídios [estão] cheios”. Como assim, “alegam”? Alguém tem dúvida de que os presídios estão, mesmo, falidos e superlotados? Nós não alegamos. Isso é fato. E eu sou daqueles que acreditam em fatos, porque não sou relativista.
A parte mais engraçada do manifesto é a “denúncia” de que os advogados e professores garantistas (e esquerdistas?) querem colocar número par de jurados no júri. E se for verdade? Os signatários nunca leram a Orestéia, de Ésquilo? O empate beneficiou o réu. A Deusa da Justiça (Palas Atena) barrou as Erínias, as deusas da vingança (que agora se mudaram para o Facebook). Orestes foi absolvido. E por que isso seria “democídio”?
Requeiro, na forma da Constituição, que os signatários do manifesto respeitem a advocacia e os professores que não pensam como eles. Sem advogados não há Justiça. Leiamos o artigo 133 da CF. E sem advogado não há processo. Não dá para fazer como em Henry VI (Shakespeare), nas palavras de Dick, o açougueiro: “First thing we do, lets kill all the lawyers” (a primeira coisa que faremos é matar todos os advogados). O mundo jurídico não é uma peça shakespeariana. Sem os advogados, não há nem bons salários para juízes e promotores.
Sugiro, ademais, que aqueles membros do Ministério Público (que, como disse, são em minoria) que acham que os advogados e professores que lutam e ensinam o estrito e rigoroso cumprimento das garantias processuais-constitucionais (se quiserem, chamem a isso de garantismo) querem proteger criminosos e garantir impunidade, assistam ao filme A Ponte dos Espiões. Já escrevi sobre esse filme. Dali retirei o “fator stoic mujic”. O advogado Sandoval defende um espião comunista. É apedrejado. Chega em casa e seu filho lhe pergunta: “— Pai, você é comunista?” e ele responde: “— Meu filho, estou apenas fazendo o meu trabalho”. Bingo. Naquele momento, confesso que meus olhos umedeceram. Stoic mujic, diz o espião a Sandoval, falando de um amigo de seu pai no qual a polícia do Czar batia e que, a cada tombo, levantava. Repetidas vezes. Sobreviveu porque, estoicamente, se erguia. Daí a expressão stoic mujic. Camponês que resiste estoicamente.
Advogado é assim. Apanha e levanta. Apanha e levanta (aliás, também não era fácil ser promotor antes da CF, antes de ter as garantias todas). E, como o amigo do pai do espião, o advogado só sobrevive porque quem lhe bate só não o mata (simbolicamente) porque levanta após cada pancada. Podem bater. Stoic mujic. Stoic mujic.
Numa palavra final, digo tudo isso como uma espécie de carta ao Ministério Público ao qual prestei concurso, instituição a que servi, com orgulho, por mais de 28 anos, no fórum, na assessoria de dois procuradores gerais e nos dois órgãos colegiados. Participei e me coloco à disposição para as lutas futuras, do mesmo modo como lutei contra a PEC 37. Os procuradores gerais e diretores de associação sabem de meu trabalho em prol das prerrogativas do MP por mais de uma década. Recebi duas altas honrarias do MP nacional e estadual. Muita gente que hoje assina manifesto desse tipo não sabe o que foi a ditadura e não sabe a luta para que o Ministério Público conquistasse as garantias que detém.
Seria ruim que discursos populistas (ou que rejeitam a priori garantias a favor de acusados) colocassem em risco tudo isso. Lamentavelmente muitos não se dão conta de que não há conquista de direitos e garantias sem história. Na Roma antiga, quando um general voltava vencedor de uma batalha, desfilava em carro aberto com um escravo ao lado, que a cada 500 jardas lhe assoprava ao ouvido: “lembra-te que és mortal”. Mais 500 jardas e lá vinha o escravo, de novo… Era uma obrigação legal do escravo fazer esse alerta.
Pois cada membro do MP que pensa como os signatários do manifesto deveria ter um estagiário ao lado lhe assoprando, a cada ímpeto populista ou tentação autoritária: “Lembra-te que tu só existes por causa da Constituição. Respeite-a”!
Da parte dos advogados e professores garantistas, apenas digo: Stoic mujic! Stoic mujic.
Post scriptum: A propósito, uma das frases que encerra o manifesto, atribuída a Victor Hugo, não é uma afirmação categórica que faz o autor, como querem dar a entender os signatários. “Aquele que mata o lobo sacrifica as ovelhas?” é, por certo, um dilema colocado em Quatrevingt-treize (exatamente como refere Robert Louis Stevenson, em prefácio à obra do autor francês). A frase é uma reflexão (e não uma afirmação), da qual surge um questionamento acerca da possibilidade de uma boa ação ser, em verdade, uma má ação; questionamento a ser respondido por Tellmarch, Lantenac, Cimourdain e Gauvain, personagens da obra, cada um à sua maneira. Desconfiei da frase desde o início, porque Victor Hugo foi um libertário. Um humanista. Graças ao seu livro Os Últimos Dias de Um Condenado foi abolida a pena de morte em vários países. Ou seja, a Wikipédia e o Google podem pregar peças.