A importância histórica do Ministério da Justiça, o primeiro criado no Brasil, por decreto do príncipe regente, D. Pedro, em 1822, deveria emoldurar institucionalmente sua primazia protocolar entre os ministérios da república. Não é o que acontece, na opinião de parlamentares que condenam sua utilização em trampolinices políticas. Ou, pior, como objeto de chacota nas redes sociais, nas quais reaparece com força a anedota da época da ditadura militar – que os revisionistas decidiram nunca ter acontecido. A piada estabelece um comparativo com o Ministério da Marinha (La Fuerza Naval) boliviana, até hoje mantida com pelo menos cinco mil efetivos ociosos, para resguardar a esperança de recuperar o litoral perdido para o Chile na guerra do Pacífico, em 1879, e acabar com o “enclaustramiento” do país. É um claro reflexo da disposição evidenciada no pacote anticrime do ministro Sérgio Moro de conferir status ministerial à operação lava jato. Sem qualquer demérito ao trabalho de combate à corrupção.
A atuação do então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba sempre mereceu ressalvas, especialmente em função da forte conotação política dos resultados. A atuação do agora ministro incomoda pelo forte componente judicalizante que tenta impor a um ambiente eminentemente político. Não por menos já conquistou o apelido de “Lei Moro” o projeto de lei, em tramitação no Congresso, que impõe quarentena de cinco anos para juízes e membros do MP que pretendam disputar eleições. E mais: se, como juiz, Moro foi apontado como abastadamente político, como ministro insiste em impor força de sentença judicial ao que deveria ser proposta política. Esse comportamento, no mínimo singular, esteve na raiz do mal estar causado na tentativa de impor ao presidente da Câmara a tramitação de seu controverso projeto da lei anticrime.
E foi o estopim de um profundo incômodo diplomático em Portugal. O ministro disse, no VII Fórum Jurídico de Lisboa, ter identificado uma “dificuldade institucional” naquele país em fazer avançar, a exemplo do Brasil, o processo contra o antigo primeiro-ministro, José Sócrates. À reação indignada que se seguiu, Moro colocou mais combustível ao declarar, em entrevista à televisão portuguesa que “não debato com criminosos”. Se esperava provocar polêmica o ministro conseguiu. Um dos mais influentes jornalistas portugueses observou que “Portugal é um estado de direito, senhor Moro”. E acrescentou: “Chamar ‘criminoso’ a um cidadão que não foi julgado nem condenado é um abuso que revela a verdadeira natureza de Sérgio Moro. Um juiz-político (ou um político-juiz) que nem num país que o recebe mostra perceber o que é o respeito diplomático. E, já agora, o que é um Estado de direito pleno.”
O antigo primeiro-ministro foi mais contundente. Ele distribuiu nota em que classifica de “repugnante” a declaração de Moro, que “põe em causa os princípios básicos do direito e da decência democrática. Não posso aceitar ser condenado sem julgamento, muito menos por autoridades brasileiras”. E acrescentou que “a Europa conhece bem o ovo da serpente. Conhecemos o significado das palavras de agressão, de insulto e de violência política. Conhecemos o significado dos discursos governamentais que celebram golpes militares, defendem a tortura e recomendam o banimento dos adversários políticos”. E, após criticar o silêncio daqueles que assistem a tudo como se não fosse com eles, disse haver no episódio o mérito de confirmar o que já se sabia sobre o personagem: “como juiz, indigno; como político, medíocre; como pessoa, lamentável”.
José Sócrates equivoca-se, porém, ao apontar o silêncio das instituições brasileiras. A OAB sempre esteve na linha de frente da luta pelo respeito à constituição, às leis e ao estado democrático de direito. Exemplo disso é a decisão do Conselho Federal pela expressa oposição em relação às propostas do ministro, Sérgio Moro, em seu pacote anticrime. A Ordem aponta inconstitucionalidades em pelo menos dez das medidas que integram o projeto. Um cuidadoso estudo elaborado em conjunto com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Instituto dos Advogados Brasileiros e Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, tece críticas ao projeto e apresenta sugestões para alterar o texto original. O documento será entregue em maio aos presidentes Rodrigo Maia, da Câmara, e Davi Alcolumbre, do Senado, Já que o próprio ministro recusou-se a debater o projeto com os mais experientes juristas do país.
As medidas inconstitucionais que integram o projeto estabelecem mudanças na execução antecipada da pena e na execução antecipada de decisões do Tribunal do Júri. Propõem também modificações nos embargos infringentes, mudanças no instituto da legítima defesa, em especial aos agentes de segurança pública e alterações no regime de prescrição. Incorpora ainda mudanças no regime de cumprimento da pena, mudanças em relação ao crime de resistência, criação do confisco alargado, interceptação de advogados em parlatório e celebração de acordos penais pelo Ministério Público, sem a necessária aprovação do juiz.