Que me perdoem os religiosos pelo raciocínio meramente ilustrativo. Mas o trabalho de um advogado suficientemente corajoso para o pleno exercício da natureza contramajoritária de seu ofício teria provavelmente comprovado a inocência de Cristo e mantido a condenação de Barrabás. O próprio Pilatos já reconhecia isso. Mateus (27) observa que os líderes dos sacerdotes e os anciãos insuflaram o povo a pedir a condenação de Jesus e o indulto para Barrabás. O certo é que a história da humanidade poderia ter sido outra, especialmente se, salvo da crucificação, Cristo operasse pelo menos mais um milagre: erradicar a estupidez humana. Quando nada não haveriam tantas guerras religiosas entre fiéis do mesmo Deus por orientação de diferentes credos.
A história está plena de episódios nos quais a insatisfação da população permite sua condução, pelo chamado efeito rebanho, a caminhos equivocados e freqüentemente trágicos. Barrabás era um “zelote”, que lutava conta a dominação romana e tinha a simpatia da população oprimida. Insuflada pela paixão e revolta, a população francesa mandou à guilhotina quase toda a nobreza e até alguns líderes revolucionários. Tudo isso para transformar, mais à frente, Napoleão em imperador. No Brasil, não custa lembrar, o golpe militar foi estimulado pela população com as manifestações chamadas “marchas da família com Deus pela liberdade” que pipocaram em 64 contra as “reformas de base” e ao “avanço comunista” do governo Goulart.
O que tem tudo isso a ver com a realidade brasileira e a ação da OAB? Tudo! Os atuais sacerdotes, que se apresentam como guardiões do templo da moralidade, pregam permanentemente contra o instituto do habeas corpus, previsto na constituição. Seria uma das tais “dez medidas contra a corrupção”, que felizmente não passaram na Câmara dos Deputados, graças à decisiva orientação e esclarecimentos da OAB, para indignação da turba, sequiosa, sedenta e ávida por condenações, crucificações e guilhotinamentos. A ponto do projeto do Ministério Público, apresentado como de “iniciativa popular”, ter sua tramitação suspensa por liminar do ministro Luiz Fux, do STF, para exigir a aprovação do texto original, objeto de campanhas que até hoje circulam nas redes sociais.
Pois bem. O ministro Gilmar Mendes publicou dia desses um artigo na Folha de São Paulo para fazer uma vigorosa defesa do HC, um dos pilares do regimes democrático de direito. É a essência da defesa do cidadão pela liberdade e contra o estado que, com assustadora freqüência, prende antes da processar e condena pela execução pública, para apenas depois investigar denúncias. Mesmo assim, obriga o suspeito a provar sua inocência, a partir do pressuposto de que todos são preliminarmente culpados. O ministro foi execrado! Chega a estarrecer a convicção manifestada em centenas de comentários de que o habeas corpus não atende a todos e, por isso, não deve valer para ninguém.
Lembrei há tempos, neste mesmo espaço, da advertência do vice-presidente Pedro Aleixo ao general-presidente Costa e Silva quando da edição do AI-05: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o País; o problema é o guarda da esquina”. Pois bem: o articulista Reinaldo Azevedo foi mais claro. Em artigo publicado na última semana ele advertiu ao público que aplaudir a humilhação de acusados, não importa se culpados ou não, corresponde a dar ao guarda do bafômetro a licença de lhe dar uns petelecos. Em seu artigo, Gilmar Mendes diz que “a sociedade clama por reação, ainda que simbólica, especialmente em face de crimes de sangue e corrupção. Não é surpresa que as decisões que privilegiam a ordem, determinando o encarceramento, sejam bem vistas pelo público. Mas decisões que afirmam a liberdade são impopulares”.
Ele defende a ação ilimitada de habeas corpus: “O Brasil tem a terceira população carcerária do mundo, com 726.000 pessoas presas — quase o dobro do número de vagas. Cerca de 40% dos encarcerados não foram julgados em definitivo. Não vamos resolver a impunidade ou a morosidade judicial antecipando penas, muitas vezes injustamente, mas apenas criar novos problemas. Os presídios servem como agências do crime organizado, verdadeiros escritórios de logística e de recursos humanos das organizações.
Nesse contexto, defender o habeas corpus é defender a liberdade individual, é defender a expectativa de civilidade para todos e cada um, mas também é defender a sociedade contra a propagação desenfreada do crime. A violência e a corrupção não podem ser combatidas fora da lei. A persecução dos criminosos sem o Estado de Direito apenas gera novos crimes”.