Lembro de ter contato com a música desde muito cedo. É uma de minhas paixões. Tendo nascido no ano de 1977, nos anos 80, quando do início da adolescência – aquela fase em que achamos que somos “gente”- emergia no país o que mais tarde chamaram de “Rock 80”, e outras denominações mercadológicas para descrever um movimento de bandas de Rock n roll que tomava conta do país naquele tempo.
Bons tempos aqueles de Legião Urbana, Paralamas, Plebe Rude, Ira!, Ultraje, Engenheiros, Lobão, Cazuza, etc. etc.
Dentre tantas canções eternizadas por esses caras e outros tantos, destacavam-se as escritas por um tal Renato Manfredini Júnior, mais conhecido como Renato Russo (o Russo vem do filósofo Iluminista Jean-Jacques Rousseau, de quem Renato era declarado fã). De onde vem será o Safadão do Weslei? Deixa pra lá, os tempos são outros, os valores são outros, a música é outra.
Em 1987 o grupo que tinha Renato como band lider, lançou seu terceiro álbum de nome “Que País é esse”, com uma sonoridade mais pesada e gravações de canções antigas, da época da embrionária banda Aborto Elétrico.
“Que País é Esse” nome da música que intitula o disco se torna, imediatamente, um hino, que ecoa até hoje como canção de atualidade ímpar. Já no primeiro verso, profetizava Mafredini:
“Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam
No futuro da nação”.
Quando a canção foi escrita, na virada dos anos 70 para os 80, o país passava por transformações importantes. O movimento “Diretas Já” se aproximava de acontecer (83/84), vivíamos ainda tempos de Regime Militar, uma fase de transição se aproximava e Renato escrevia o que via acontecer com nosso povo, enfim, havia sujeira pra todo lado, das favelas ao senado e ninguém respeitava a constituição.
Estivesse vivo hoje, Renato teria que editar sua obra de arte. Assistimos na data de ontem (17/02/2016) aquele que deveria ser o guardião da Magna Carta, o guardião das conquistas históricas do povo brasileiro (às duras penas, com perda de vidas), o STF, entrar no rol daqueles que não respeitam a Constituição, quando julgou um caso concreto no HC 126292 e relativizou a garantia constitucional de ser considerado presumidamente inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Segundo o STF, com esse entendimento, mantida condenação criminal em segunda instância, e, havendo o manejo de recursos de natureza extraordinária, a pena deve ser imediatamente cumprida, não importando se ainda considerado inocente o acusado.
Muito já foi escrito e dito por nomes de envergadura no mundo jurídico tupiniquim após a nebulosa decisão. O que chama a atenção do humilde fazedor deste manuscrito é o argumento de um dos nobres Ministros da Corte Constitucional dizer que esse entendimento novo representa um anseio da sociedade brasileira.
Qual a base científica para concluir neste sentido? Notícias jornalísticas? A falácia de que somos o país da impunidade (temos mais de 600 mil presos, somos a terceira/quarta população carcerária do planeta)? Que impunidade é essa? Enfim, o fato é que retiraram do povo brasileiro- o mesmo que aplaude a decisão do STF – um direito que fora conquistado, uma conquista histórica. E o povo, não sabendo exatamente do que se trata, parece aprovar a posição da Corte Suprema.
Nem tudo que o povo quer é o que ele precisa. Decisões judiciais que influenciam diretamente no direito de ir e vir das pessoas não podem ter como argumento a “vontade do povo”. Hitler atendeu a vontade do povo Alemão quando iniciou sua cruzada nefasta pela Europa; Mussolini da mesma forma, tinha o apoio popular na Itália quando deu início a sua ideologia fascista; Jesus Cristo foi crucificado por vontade do povo. São vários os exemplos.
Como estudante de direito, a situação que passamos é preocupante. Como cidadão, mais preocupante ainda. Nada, nada deve justificar o retrocesso em conquistas históricas que tratam da liberdade do povo. A cada dia vemos aumentar o poder do estado e em contrapartida diminuir a liberdade do homem.
É preciso que saibamos separar bem as coisas para não cairmos nas armadilhas do discurso punitivista extremado. Uma coisa é a necessidade de punição de pessoas ligadas a escândalos de corrupção (esse tem sido o grande pretexto justificador da mitigação de garantias constitucionais). Uma vez comprovada sua culpa (com obediência litúrgica dos postulados constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório) que sejam punidos na forma como determinam as regras do jogo. Outra coisa é a diminuição de garantias para facilitar a punição estatal. Aí entra o inaceitável. Porque escolhemos viver sob o manto do Estado de Direito, simples assim.
O que deve-se ter em mente é que, com a decisão do STF não serão alcançadas somente pessoas envolvidas em casos de desonestidade com a administração pública. Aquele acidente de trânsito em que você se envolveu terá o mesmo tratamento; aquela situação excepcional em que foi preciso você fazer uso de reação a uma injusta agressão (legítima defesa) e foi obrigado a sacrificar a vida de alguém, também será alcançada pela decisão do STF. Ou seja, tendo você um julgamento injusto (os casos se multiplicam), e esse julgamento sendo mantido pelo Tribunal de Justiça de seu estado, deverá de imediato iniciar o cumprimento da pena injustamente imposta, mesmo ainda tendo o direito de recorrer da decisão para o STF ou STJ, mesmo ainda sendo considerado presumidamente inocente pela Constituição Federal.
Sendo eventualmente absolvido pelo STF ou STJ, terá cumprido pena, provavelmente boa parte ou totalmente, mesmo sendo declarado inocente a posteriori. Estão levando isso em consideração?
Estamos perdendo uma grande oportunidade de nos firmarmos como verdadeiro Estado Democrático de Direito. Ademais, através somente do Direito Penal, não transformaremos esse país em um país melhor. Não acredito em Estados em que os seus “heróis” vestem toga.
Aos que aplaudem a decisão do STF, respeitamos a posição, mas temos o dever de alertá-los: Estão aplaudindo a diminuição de um direito que é também seu. O de ser considerado presumidamente inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, afinal, é isso que está escrito na Constituição da República .
Discutamos então porque os recursos manejados ao STJ e STF demoram tanto para serem julgados. Discutamos então o caos que ocorre no Poder Judiciário e sua precária estrutura; discutamos então o trabalho desumano de alguns bons juízes que administram cartórios com 10, 15, 20 mil processos em andamento. Enfim, já que não conseguimos matar as pulgas, assassinamos o cachorro.
“Que país é esse?”
RONNY TON ZANOTELLI, Advogado. Especialista em Ciências Criminais. Professor de Direito Penal e Processo Penal na Faculdade de Rolim de Moura-FAROL. Ex-Presidente da OAB Subseção de Rolim de Moura-RO nos anos de 2010/2015.
1 “Constituição Federal, inciso LVII do artigo 5º: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”