A segurança jurídica é preceito de importância capital em todas as sociedades, das mais antigas às contemporâneas. Ela norteia a ordem jurídica, conformando as normas e os institutos para viabilizar previsibilidade à sociedade e estabilidade ao cidadão. Como elemento essencial do Estado Democrático de Direito, se faz indispensável ao cumprimento das finalidades do Estado, que deve não somente garantir direitos, mas garanti-los com estabilidade, durabilidade e segurança.
A necessidade de segurança na condução das ações do Estado decorre justamente por ser o governo reflexo da natureza humana. Se os cidadãos, principalmente na liquidez da modernidade, estão sujeitos a transições e inflexões variadas, seu governo também o estará. Daí advém a importância de se proteger a confiança dos jurisdicionados na manutenção das expectativas no tocante a situações jurídicas já consolidadas.
Apesar de não contar com previsão expressa na Constituição de 1988, doutrina e jurisprudência não divergem em relação à sua força normativa. Na expressão de Paulo de Barros Carvalho, a segurança jurídica é sobreprincípio porquanto norteia a produção, interpretação e aplicação do ordenamento. De forma semelhante, Rafael Valim a classifica como sobredireito, vez que se presta a coordenar outras normas jurídicas – formal e temporalmente – visando a previsibilidade que se espera da atuação estatal.
O conteúdo axiológico da segurança jurídica pode ser analisado sob três prismas diversos, porém, complementares. Sob o ângulo da sociedade, destaca-se a função de dirimir litígios, estimulando as pessoas a se comportarem de acordo com o padrão das previsões legais. Do ponto de vista do cidadão, ela promove a proteção da confiança que se traduz no princípio da não surpresa, ou seja, alterações posteriores de lei ou jurisprudência não devem retroagir para se aplicar ao cidadão que se comportou de acordo com normas e entendimentos então vigentes. Por fim, sob o prisma do órgão julgador, este exerce funções que vão além da mera solução do litígio entre as partes, mas também de orientar condutas aos demais jurisdicionados por meio da criação de parâmetros a serem seguidos. Desse modo, reduz-se a incidência de conflitos sociais diante da confiabilidade e certeza de suas decisões.
Analisados em conjunto, esses prismas axiológicos demonstram que a segurança jurídica pressupõe confiabilidade, clareza, transparência e racionalidade das ações do Estado, bem como a confiança dos indivíduos a respeito de suas disposições pessoais e os efeitos jurídicos decorrentes de seus atos. Para isto, exige-se do corpo judicial que suas ações e decisões possam ser minimamente previstas e conhecidas pelos cidadãos.
Essa exigência ganha relevo durante a superação do momento histórico de exaustiva codificação do direito, quando ao juiz cabia a simples aplicação das regras descritas nos códigos. A dinamicidade da sociedade tornou o modelo codificador insuficiente frente à multiplicidade de relação fáticas que estavam a acontecer. A partir daí permitiu-se ao magistrado maior espaço para interpretação, decidindo controvérsias sem aparente solução legal imediata por meio do uso de categorias normativas abstratas, como os princípios.
Por não ser mais a lei condição suficiente para a garantia de segurança ao jurisdicionado, a atividade jurisdicional assume papel ímpar, mesmo nos países de tradição da Civil Law, que conferem maior deferência às soluções previstas em lei. A jurisprudência torna-se responsável por, à medida que interpreta a legislação, aplicá-la ao caso concreto, fomentando o sentimento de previsibilidade em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos e atenuando o risco de surpresa ao cidadão.
Ocorre que atribuir função criativa ao julgador inevitavelmente permite que este seja influenciado por motivos políticos e pessoais, colocando em risco a estabilidade da ordem e a segurança do jurisdicionado. Por isto, ao orientar a atuação dos magistrados no processo de tomada de decisão, a segurança jurídica impõe que as decisões judiciais sobre casos semelhantes sejam também semelhantes entre si. Assim, eventuais mudanças jurisprudenciais devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, inclusive quanto à extensão de seus efeitos no tempo.
Fatos e relações jurídicas verificados sob a vigência de determinado entendimento jurisprudencial sob ele devem ser regulados, em respeito à boa-fé do jurisdicionado que depositou sua confiança no sistema judicial. Consentâneo a essa necessidade, o Novo Código de Processo Civil em seu artigo 927, § 3º determina que na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e com vistas a resguaradr a segurança jurídica.
O STF se debruçou sobre a questão da aplicação retroativa de mudança de entendimento jurisprudencial do STJ no julgamento do ARE 951.533. O STJ entendia que, quando determinado tributo era declarado inconstitucional pelo Supremo, o cálculo do prazo prescricional para a repetição de indébito só começava a contar do trânsito em julgado dessa decisão. Posteriormente, aquela corte passou a entender como novo lapso prescricional o período de 10 anos, considerando o pagamento – cinco anos do fato gerador mais cinco da data da homologação tácita.
O voto da maioria no ARE 951.533/ES foi capitaneado pelo ministro Dias Toffoli, que entendeu pela necessidade de modulação dos efeitos do novo entendimento jurisprudencial. A mudança brusca de jurisprudência acerca do prazo prescricional não poderia alcançar ação que já estava em curso quando alterado o entendimento do STJ. Utilizou-se como precedente o RE 566.621/RS que, em contexto de redução do prazo prescricional para repetição de tributo sujeito a homologação, decidiu pela não retroação sob pena de violar o princípio da segurança jurídica.
Acompanhando a divergência, o ministro Ricardo Lewandoski ponderou que inflexão jurisprudencial que importe restrição a direitos do cidadão deve observar alguma ponderação, levando em consideração os comportamentos então tidos como legítimos. Isto porque tais comportamentos foram “praticados em conformidade com a orientação prevalecente, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito”.
A decisão do Supremo converge com a recente alteração promovida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O art. 23 do referido diploma estabelece que a decisão judicial que alterar interpretação de lei, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quanto à sua aplicação. A norma resguarda, de um lado, a possibilidade de alteração do entendimento jurisprudencial, sem descuidar, de outro, da segurança jurídica, da estabilidade das situações já consolidadas e da proteção ao princípio da confiança.
As decisões judiciais, principalmente aquelas oriundas das cortes superiores, engendram uma legítima expectativa aos indivíduos de que sua conduta poderá se orientar por determinado padrão definido pelos tribunais. Portanto, a aplicação retroativa de jurisprudência não pode ser automática, quando envolvidos direitos das partes, encontrando-se solução que resguarde comportamentos até então praticados em conformidade com o ordenamento jurídico.
Não se trata, pois, de imobilização da atividade judicial, mas apenas de reconhecer eficácia ao princípio da segurança jurídica na tutela da confiança legítima do cidadão perante o sistema de justiça. É, por extensão, o cumprimento da função máxima do Judiciário de alcançar a pacificação social segundo os valores constitucionais vigentes.
Referências
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. São Paulo, 2003.
[2] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves. Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é advogado, doutor em Direito pela Universidade de Salamanca. Foi presidente nacional da OAB de 2013 a 2016.