A mudança de governo não foi suficiente para afastar a contumácia de antigas práticas de favorecimento e compadrio, invariavelmente destinadas ao prejuízo do cidadão. Pelo menos é o que ficou demonstrado com a recente decisão do Ministério da Educação ao estabelecer o que o presidente nacional da OAB, Cláudio Lamachia, classificou de “estelionato educacional”, ao patrocinar a criação dos cursos de tecnólogo e técnico em serviços jurídicos. Trata-se de uma aberração destinada a vender uma formação ilusória aos incautos que receberão o diploma apenas para constatar a dramática realidade do mercado de trabalho e perceber tardiamente que caíram em um verdadeiro conto do vigário chancelado pelo governo. É decepcionante verificar, após quase um ano de um governo sobre o qual foram depositadas as esperanças de toda a população, que o excremento continua o mesmo.
“O MEC mais que se distancia de sua função de zelar pelo rigoroso padrão de qualidade do ensino ao abrir caminho para a criação de uma classe indefinida de profissionais e criar problemas ainda mais sérios às centenas de milhares de bacharéis em Direito que hoje se formam e não encontram posição favorável no mercado de trabalho” – disse Lamachia na abertura do XXXIX Encontro Nacional de Presidentes de Caixas de Assistência do Brasil (Concad), em Recife (PE). Ele destacou que a OAB já manifestou ao presidente da República sua total contrariedade com a medida, para anunciar que irá judicializar o tema, caso o MEC não reavalie sua posição. O presidente da Ordem disse ainda ser necessário garantir a qualidade da formação acadêmica dos bacharéis em direito e os cursos técnicos e tecnólogos não são habilitados a formar bacharéis em direito, como já ficou claro em tentativas anteriores de autorizar esse tipo de curso. Ele situou apropriadamente a decisão do MEC ao classificá-la de mera “mercantilização do sistema educacional” – princípio que tem orientado sua desastrosa atuação nas duas últimas décadas – ao colocar o padrão de qualidade de ensino e de reconhecimento aos professores em patamar secundário.
E foi contundente ao manifestar sua indignação: “A educação, especialmente no ramo jurídico, não pode ser tratada pelo Estado como uma simples moeda de troca. Trata-se de direito de cada brasileiro de receber ensino de qualidade, com respeito a critérios técnicos coerentes com a responsabilidade de sua futura atuação para a defesa dos interesses da sociedade. É preciso evitar que sejam, mais uma vez, vítimas de um embuste cruelmente aplicado justamente por quem deveria pugnar pelas boas práticas na educação brasileira”. O verdadeiro engodo é chancelado pelo relator do projeto no Conselho Nacional de Educação, conselheiro Joaquim José Soares Neto, que justifica a medida com a desculpa de “encaminhar ao mercado de trabalho pessoas aptas a auxiliar advogados, promotores e juízes, por exemplo”. Ele anuncia com clara satisfação que o tecnólogo pode se formar em dois anos e receber diploma considerado de nível superior. E demonstra claramente seu desprezo pela valorização do aprendizado, como se isso não tivesse qualquer relação com o ensino de qualidade.
Embaladas pelo claro compadrio do MEC, pelo menos três instituições de ensino do país já oferecem cursos de tecnologia em Serviços Jurídicos, pelo sistema de ensino à distância. O Centro Universitário Internacional (Uninter), por exemplo, oferece aulas de Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais: a grade curricular inclui legislação trabalhista, mediação e arbitragem, registro de imóveis e competências do oficial de Justiça (1.800 horas). E anuncia na internet que “O curso prepara você para um excelente desempenho nas carreiras parajurídicas do poder judiciário, cartórios judiciais e extrajudiciais, tabelionatos, escritórios de advocacia, esfera policial, departamentos jurídicos e de recursos humanos de empresas, assessoria parlamentar, ou como profissional autônomo. Bela carreira, com belas possibilidades de ganhos”.
É, sem dúvida alguma, uma propaganda enganosa, pois a tal “bela carreira, com, belas possibilidades de ganhos simplesmente não existe. O site Migalhas publicou um estudo feito pelos professores Claudio de Souza Miranda e Marco Aurélio Gumieri Valério, da USP, sobre a percepção dos advogados regularmente formados e aprovados em exames da Ordem quanto aos seus próprios salários. Dos entrevistados, 32,9% disseram estar insatisfeitos, total ou parcialmente, com a renda derivada da atuação profissional. As diferenças na satisfação acentuam-se com a mudança de gênero. Entre as mulheres, a insatisfação com a renda aumenta: – 44,6%. A pesquisa foi feita com advogados de todos os Estados e do DF e os dados integram o ICAJ – Índice de Confiança dos Advogados na Justiça – criado em 2010 e refletem especialmente as angústias dos profissionais em início de carreira, cujos ganhos variam entre R$ 1 e R$ 1,5 mil mensais, quando conseguem vagas em escritórios. Aonde então os tais “tecnólogos” haverão de encontrar os tais ganhos milagrosos? Talvez apenas no mundo onírico do MEC e do CNE.