Em tempos difíceis, não raro as sociedades buscam saídas fáceis para resolver problemas que, em vez de serem atenuados, acabam por se agravar. Um exemplo básico desse tipo de movimento pode ser visto nos pedidos de pena de morte quando crimes de maior potencial ofensivo ganham o noticiário.
Tramitam no Congresso Nacional projetos de EC e de lei que visam pôr fim a um dos mais importantes pilares de nossa CF: a presunção de inocência. O projeto pretende viabilizar o envio para a prisão de pessoas que ainda não foram consideradas culpadas por decisão definitiva da Justiça.
O STF, por maioria de votos, decidiu nesse mesmo sentido. Também considerou possível a violação do sigilo bancário sem ordem judicial. As duas decisões, respeitadas as opiniões em contrário, reescreveram a Constituição da República que expressamente exige o “trânsito em julgado” de sentença penal para afastar a presunção de que o brasileiro é honesto.
Diferentemente de outros ordenamentos, no Brasil a presunção de não culpabilidade é literalmente qualificada, persistindo até o trânsito em julgado. Não há no texto constitucional, data vênia do entendimento contrário, alusão a decisão definitiva nas instâncias ordinárias.
Não se pode olvidar que a relativização do postulado constitucional foi efetuado considerando o valor combate ao crime, especialmente o de corrupção. Ocorre que a finalidade nobre da interpretação não é suficiente para suplantar a literalidade do texto constitucional. Passa-se a ter a presunção de culpabilidade e não mais de inocência.
O precedente sobre a constitucionalidade da lei denominada “ficha limpa”, que possibilita a declaração de inelegibilidade a partir de julgamentos por órgãos colegiados, em nosso sentir, não se aplica à hipótese penal. Em primeiro, porque inelegibilidade não é sanção, mas critério de aferição dos requisitos de candidatura, para o exercício do múnus público de representação popular. Por segundo, a irreparabilidade da prisão injusta é manifesta.
O próprio fundamento do voto condutor da nova maioria elenca que são poucos os casos de provimento dos recursos em matéria penal. Contudo, bastaria um caso de prisão injusta para justificar a não modificação do precedente pelo STF. Nenhum cidadão pode ficar à mercê de uma prisão indevida.
É bom frisar que, caso o envio de pessoas para a penitenciária a qualquer custo acabasse com sensações de impunidade, deveria tal sentimento existir num país, como o Brasil, com a quarta população carcerária do mundo.
Além disso, sabemos que milhares de julgamentos nos tribunais superiores modificam decisões de órgãos colegiados estaduais. Quem irá restituir a liberdade suprimida indevidamente desses brasileiros?
O processo penal tem por finalidade justamente proteger inocentes frente à atuação punitiva do Estado. Não é um instrumento de opressão estatal; antes, é o meio de assegurar a defesa ampla dos denunciados e a tutela dos direitos do cidadão.
Além disso, a fragilização de conquistas históricas não parece ser o caminho mais acertado.
É exatamente num momento como este que se percebe a sabedoria dos constituintes na fixação das cláusulas pétreas, imodificáveis. A decisão da maioria do STF considera suficiente a decisão final nas instâncias ordinárias, porquanto o recurso não mais poderá discutir matéria fática ou probatória, como sabido. Ocorre que o direito ao recurso integra a garantia constitucional da ampla defesa, não se limitando aos fatos e provas.
Qual rumo pode tomar uma nação que fragiliza a presunção de inocência em nome da promoção de prisões para se acabar com sentimentos difusos de impunidade? Dar força a órgãos acusadores, que podem trancafiar seres humanos em masmorras, em detrimento de suas garantias legais, certamente não fará com que o Brasil avance no campo da democracia.
O devido processo legal existe justamente para que o cidadão possa enfrentar o Estado sem medos. Dentro de uma cela, muitos espíritos se quebram. Na história, quantos já não confessaram crimes que não cometeram unicamente para encerrar o ciclo de violência de que são vítimas no cárcere?
Nosso ordenamento já prevê situações em que pessoas podem ser detidas de forma preventiva. Previstas as hipóteses legais, a prisão cautelar pode ser efetuada. O que não é possível é a antecipação da punição, o cumprimento da pena, antes do trânsito em julgado.
O ônus da demora do judiciário em julgar os recursos não pode ser jogado sobre os ombros do cidadão. A prisão é uma sanção que não pode ser utilizada sem a certeza de que a pena deverá ser cumprida, o que advirá apenas quando não mais comportar recursos judiciais.
O bem mais precioso de um cidadão é sua liberdade. Devemos nos lembrar que o arbítrio sempre rondará esquinas da sociedade que hoje, felizmente, não são muito frequentadas. Ao fragilizarmos direitos fundamentais, trazemos para mais perto do sol resquícios do passado que devem permanecer trancafiados nas sombras.
O cidadão não pode ser fragilizado diante do gigantismo do poder estatal, sob pena de se tornarem realidade as palavras de George Orwell, no livro de ficção 1984, para quem o todo poderoso velho irmão, o Estado, iria invadir de modo excessivo a esfera dos indivíduos. Para Rui Barbosa, quando a garantia constitucional de um cidadão é vulnerada, então o sistema jurídico como um todo é posto em risco.