Um dos mais fortes indicativos de uma lei que “pega” acontece quando a população dela tem conhecimento e aprova seus efeitos. A Lei Complementar 135/2010, de iniciativa popular – Lei da Ficha Limpa – é um exemplo tão consensual que até os partidos políticos em geral a utilizam como critério para a seleção de candidatos. As exceções estão ligadas a casos isolados que dependem de recursos judiciais. Exatamente por isso foi no mínimo surpreendente a decisão do Supremo de subtrair de seu contexto a aplicabilidade das decisões dos tribunais e conselhos de contas pela condenação de gestores por desvios de verbas públicas.
É um retrocesso capaz de conduzir ao descrédito a integralidade da lei às vésperas das eleições municipais, especialmente quando o ministro Gilmar Mendes vem a público para afirmar que a lei foi “feita por bêbados”. Uma ofensa inaceitável aos milhares de cidadãos que assinaram a proposta de iniciativa popular, às instituições – a OAB à frente – que a endossaram, ao Poder Legislativo que a aprovou e ao Executivo que sancionou. Seria o ministro a única personalidade entidade sóbria em meio a toda essa multidão de brasileiros? Aparentemente não, posto que tal declaração jamais poderia ter partido conscientemente de um servidor remunerado com o dinheiro do público em cujo nome, a princípio, lhe foram delegados o cargo e as elevadas funções.
O próprio presidente do STJ, ministro Ricardo Lewandowski, para quem “por força da Constituição, são os vereadores quem detêm o direito de julgar as contas do chefe do Executivo municipal porque são eles que representam os cidadãos” declarou, em 2010, na condição de presidente do TSE que “A ficha limpa pegou sem dúvida nenhuma.” No momento em que o país inteiro respira um pouco mais aliviado no convencimento de que há efetivamente um combate permanente à corrupção, não seria o caso do STF apontar eventuais falhas e propor o aprimoramento da lei ao invés de sancionar a devolução dos direitos políticos a milhares de políticos apontados como corruptos pelos tribunais e conselhos de contas?
O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, lembrou, em nota oficial, que a lei é amplamente reconhecida pela sociedade como um avanço da democracia e do sistema eleitoral e que sua criação foi apoiada por diversas entidades, que estavam conscientes da importância da medida. E acrescentou que a linguagem utilizada por Gilmar Mendes “não se coaduna com a postura de um magistrado, notadamente um ministro do STF, na hora de exercer seu direito de crítica, seja ela direcionada à sociedade, proponente da lei, seja aos parlamentares que aprovaram a matéria, seja ao chefe do Executivo que a sancionou.”
A nota acrescenta que A Lei da Ficha Limpa é amplamente reconhecida pela sociedade como um avanço da democracia e do sistema eleitoral, impedindo a candidatura de quem tem ficha suja. Tanto é assim que foi apresentada como projeto de lei de iniciativa popular. Todas as entidades que apoiaram a Lei da Ficha Limpa, entre elas a OAB, estavam absolutamente conscientes da importância dessa medida. O ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE, deveria reconhecer e apoiar todas as iniciativas que aperfeiçoam o sistema eleitoral. “Uma vez que o STF já concluiu pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, a sociedade aguarda do ministro uma proposta para aperfeiçoar o texto dessa legislação” – conclui.
Não há como desconsiderar, nesse momento conturbado da vida nacional, a necessidade de fortalecimento institucional dos poderes constituídos, sem o qual o próprio conceito de estado democrático de direito resulta entibiado, esvaecido e acabrunhado. Se da solidez que é esperada do Supremo Tribunal Federal pela população partem, pela manifestação das autoridades que o integram, sinais de afrouxamento na luta em favor da moralidade, como esperar a permanência do público nessa trincheira? Acredito, respeitosamente, ser este o momento – agora sim – de manifestação dos excelentíssimos senhores ministros, sem a qual fica difícil cobrar voto consciente da população.