No processamento cognitivo da imensidade de conhecimentos adquiridos nas palestras magistrais do III Encontro de Cortes Superiores Brasil Espanha, não me foi possível deixar de submeter a realidade da sociedade de informação e a preocupação com a segurança de dados – temas praticamente centrais do evento – ao filtro estabelecido por Hannah Arendt em “A condição humana”. Ela aponta nessa direção logo no prefácio: “O que proponho é muito simples, portanto: nada mais que pensar sobre o que estamos fazendo”. Pouco difere do que defendo no artigo “Advogar com Alma”, publicado em agosto de 2020. Eu disse então que:
– “Nada mais sublime do que engajar-se com todo o seu ser na missão que caminha de olhos vendados guiada pela justiça. A intuição seguida à risca. Domínio e talento que se unem em prol de um único ideal, advogar com precisão, ética e moral. A perspicácia que envolve a consequência. O talento movido pela experiência. A humanidade e a praticidade que não podem tornar seres indiferentes à realidade. A busca incessante pela verdade. O caminho percorrido pelo dom, sensibilidade e resiliência que dão o tom àqueles que trazem a persistência no coração, ou jamais poderiam encarar esta profissão.
Tive a satisfação de participar, com inúmeros colegas advogados, dos debates fortemente elucidativos do III Encontro de Cortes Superiores Brasil & Espanha, promovido pela revista Justiça & Cidadania com apoio da AMB e da Escola de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid. O evento reuniu expoentes do saber jurídico de ambos os países nas dependências da universidade madrilena. Centraram foco em três painéis de debates e conferências sobre “Sociedade de informação e novas tecnologias”, “Aspectos Legais, Proteção de Dados, Privacidade e Novas Tecnologias” e “Aspectos Penais, Privacidade de Proteção de Dados e Novas Tecnologias”.
Comum à integralidade das palestras e discussões da temática esteve sempre presente o cuidado com o tratamento jurídico dos avanços tecnológicos e sua sistematização na principiologia contemporânea do direito. A temática reflete a preocupação mundial na busca de mecanismos para a proteção de dados na comprovadamente irreversível incorporação cada vez maior da tecnologia à atividade humana. E, mais que isso, saber de que forma se poderá consolidar os benefícios indiscutíveis da inovação com a adoção de procedimentos capazes de coibir abusos e práticas criminosas. A tecnologia digital, fortemente incorporada à realidade do judiciário brasileiro, tem trazido inúmeras dificuldades, em meio a algumas soluções.
O próprio STF já se envolveu na discussão do assunto. E decidiu pela suspensão de todos os processos judiciais em que dados bancários de investigados foram compartilhados por órgãos de controle sem autorização do Poder Judiciário. A decisão encontra lastro no pensamento da advogada e professora Laura Scherrtel Ferreira Mendes, Autora do livro “Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental” (Saraiva, 2014) e coordenadora do Tratado de Proteção de Dados Pessoais (Editora Gen, 2020). .
Doutora em Direito Privado pela Universidade Humboldt de Berlim, Laura Mendes ensina que o processamento automático dos dados ameaçaria o poder do indivíduo em decidir por si mesmo se e como ele desejaria tornar públicos dados pessoais no sentido de que o processamento de dados possibilitaria a elaboração de um “quadro completo da personalidade” por meio de “sistemas integrados sem que o interessado possa controlar o suficiente sua correção e aplicação”. […] Uma sociedade, “na qual os cidadãos não mais são capazes de saber quem sabe o que sobre eles, quando e em que situação”, seria contrária ao direito à autodeterminação informativa, o que prejudicaria tanto a personalidade quanto o bem comum de uma sociedade democrática.
O raciocínio reproduz, na exata medida, o pensamento extraído do primeiro painel do Encontro. “Uma das técnicas mais utilizadas para a resolução desses conflitos no Direito Constitucional é a ponderação dos valores em conflito – asseverou-se, para concluir: “As cortes brasileiras fazem isso já com certa frequência. O Judiciário brasileiro o tem feito não apenas do ponto de vista de quem julga, mas também de quem utiliza a tecnologia para si próprio, pois é também um usuário desses sistemas, com impactos, portanto, tanto na esfera administrativa, quanto na atividade judicial”.
Resta evidente que a origem dos conflitos que envolvem a segurança e compartilhamento de dados está na elevada precificação das bases de dados e na ausência de empatia dos operadores, intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. É um imenso desafio. Como disse, porém, no artigo “Advogar com Alma” ninguém falou que seria fácil. Mas a advocacia é, definitivamente, a celebração do impossível.