Vinicius Valentin Raduan Miguel*
TRAJES DA ADVOCACIA, SUSTENTAÇÃO ORAL E MAIS UM ÓBICE AO DIREITO DE DEFESA
Um episódio chamou a atenção do debate nos tribunais, seccionais da OAB e imprensa esta semana.
Tratou-se do impedimento do advogado Gustavo Coutinho de sustentar oralmente suas razões em lide que atuava, no dia 28/06/2023, no TJ/DFT.
A 7ª Turma Cível da 2ª Câmara do tribunal deliberou, por unanimidade, que ele não poderia usar os únicos quinze minutos reservados à sustentação oral por estar trajando roupas ali descritas como incompatíveis.
As roupas incluíam o uso de paletó, camisa social e calça, bem como beca, a veste cerimonial.
REVISITANDO A HISTÓRIA DO DIREITO E UM POUCO DE SOCIOLOGIA JURÍDICA
Os trajes usados em tribunais tem uma origem histórica e uma prática sociológica que merece uma visitação.
O uso atual das togas, becas e estolas (para mulheres) é oriundo da práxis clássico romana.
Depois, esse uso foi retomado pela profissão jurídica na Europa, por volta do século XII.
As reminiscências da tríade cristã-religiosa, acadêmico-confessional e jurídico-canônico moveram esse resgate do classicismo romano e transportaram o uso das vestes, então restritas ao uso cerimonial escolástico, à prática forense.
Não poderia ser diferente: os acervos bibliográficos e culturais clássicos greco-romanos estavam em posse da Igreja.
Aqueles que podiam se dedicar aos estudos, estavam limitados aos centros culturais e acadêmicos de tipos religiosos. Os que estudavam o Direito eram os letrados vinculados ao poder eclesial.
Numa tentativa de emular os clássicos, a emergente profissão jurídica buscava um padrão, discurso, jurisprudência e vestuários inspirados na Roma Clássica.
O emprego das togas e becas foi um passo nessa direção.
Alhures, o uso da toga, na Roma Clássica, tinha uma conotação cerimonial religiosa, de uso por sacerdotes, ou nobiliárquica, entre magistrados, senadores e imperadores.
Descabia o uso de tais vestimentas em cores escuras, como praticado atualmente, eis que o sombrio era restrito aos atos fúnebres.
Usualmente, a veste descia até o talus – ossatura que intermedia a conexão entre a perna e pé – daí a concepção de “vestes talares”.
Recobrir até o talo era uma prática conveniente para ocultar os tornozelos, já que o calceus comumente utilizado, sandália ou socci, não ultrapassavam-no.
Essa invocação, na Europa medieval, acabou permanecendo e sendo exportada culturalmente para os países colonizados, como toda a América Latina, nosso caso.
O CASO DA PROIBIÇÃO DE PROFERIR SUSTENTAÇÃO ORAL PELO ADVOGADO EM RAZÃO DE SUAS VESTES
Aqui não se quer fazer um juízo sobre a cor branca na miríade de cores existentes.
Nem se vai avançar na inadequação de uma decisão extra-autos ter coartado um direito previsto no CPC (a sustentação oral tem previsão legal expressa, além de constar dos regimentos internos de todos os tribunais superiores, federais e estaduais).
Não quero adentrar na importante questão da necessidade de dar uma interpretação conforme a Constituição nos temas de liberdade de crença, de liberdade religiosa e de liberdade de expressão, que podem se manifestar em um vestuário, ornamentos e mesmo pilosidades, como barbas ou cabelos.
Há uma lei, federal e especial, que dispõe sobre a exclusividade do Conselho Federal de dispor sobre as vestes advocatícias. Trazemos o Estatuto da Advocacia:
Art. 58. Compete privativamente ao Conselho Seccional: XI – determinar, com exclusividade, critérios para o traje dos advogados, no exercício profissional;
Assim, não cabe regimento interno (norma hierarquicamente inferior à legislação), genérico em relação à regras processuais, adentrar em tema de competência exclusiva de outro órgão, o Conselho Seccional da OAB.
A questão é óbvia: soaria igualmente absurdo o Conselho Seccional querer dispor sobre togas ou gravatas de magistrados.
Ou não causaria estranheza, no mesmo norte, a OAB querer delinear a moda e parâmetros de vestuários para Promotores e Procuradores de Justiça?
APONTAMENTOS INCONCLUSIVOS
São desgraçadamente comuns fatos similares ao reportado. De cidadãos impedidos de participarem de audiências por não disporem de sapatos, de mulheres advogadas bloqueadas no ingresso aos fóruns por estarem, de acordo com moralistas de plantão, inadequadamente vestidas e até de obstar a participação de advogados regularmente constituídos de alguma cerimônia por não usarem gravata.
A questão pede bom senso. E demanda hermenêutica, para além de senso comum, preconceitos sociais e racismos estruturais.
Até mais, o que se limitou, além do exercício profissional do advogado, foi o próprio direito de defesa do cidadão-jurisdicionado.
Em tempos que a sustentação oral é admitida virtualmente, com foco exclusivo na face do profissional, sendo desimportante se veste calças ou bermudas, é tempos de harmonizar normas que restrinjam o amplo acesso à Justiça. Afinal, Ela é cega não tateia os causídicos aferindo se as vestes alcançam o talus.
Entre o pudor e o mal gosto de vestuário, entre a moda e o estilo, entre as tradições e tecnologias, cabe à OAB dispor, regular, examinar e, se for o caso, sancionar a pessoa profissional da advocacia em desconformidade com o previamente estabelecido.
Esta é a questão.
Referências
Brundage, James A. (1994). “The Rise of the Professional Jurist in the Thirteenth Century”. Syracuse Journal of International Law and Commerce. 20.
Shumba, L. (2008), Roman Dress and the Fabrics of Roman Culture, Toronto: University of Toronto Press.