Pelos 800 quilômetros que separam a fronteira do Brasil da cidade de Boa Vista, capital do estado de Roraima, centenas de imigrantes venezuelanos caminham dia e noite. A maioria, homens desacompanhados. Mas é possível encontrar também mulheres e crianças. Dados da prefeitura de Boa Vista indicam que há 25 mil imigrantes venezuelanos vivendo na capital, grande parte deles em abrigos organizados pelo Exército e pela Organização das Nações Unidas. A partir desta segunda-feira (30/7), o Judiciário local começará a atuar de forma sistematizada em mutirões itinerantes para legalizar e documentar todos os estrangeiros da região.
Em junho, o Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR) firmou acordo de cooperação judicial com o alto comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) em que se compromete a prestar atendimento judicial itinerante à população de refugiados venezuelanos que se encontra no Estado. O acordo permite, inclusive, que toda a documentação do processo seja em espanhol, assim como a língua a ser utilizada durante as audiências.
A participação de magistrados na Justiça Itinerante, uma política incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é regulamentada pelo Provimento n. 20/2012 da Corregedoria Nacional de Justiça. “A Constituição brasileira diz que somos todos iguais. Então temos que nos adaptar a essa nova realidade: quase 10% da população de Boa Vista é imigrante”, afirmou o juiz Erick Linhares, da Vara Itinerante de Boa Vista, idealizador do acordo.
Moram em cada abrigo de 600 a 800 imigrantes. O primeiro a receber a justiça itinerante será o de Jardim Floresta. Uma equipe formada por um juiz civil brasileiro, um promotor, um defensor público e um juiz conciliador venezuelano fará as audiências. Entre os serviços prestados estão reconhecimento ou extinção de união estável, reconhecimento de paternidade, fixação de alimentos, guarda de crianças, além de processar registros de nascimento, emancipação e interdição, bem como causas cíveis dos juizados especiais e fazendários.
“Estamos olhando a longo prazo. Tem muita criança nas ruas. Temos que colocá-las na escola para garantir um futuro. Também queremos permitir o acesso à saúde”, reforçou o juiz Linhares.
Juiz venezuelano
A equipe da justiça itinerante está otimista com o resultado das visitas em especial pela participação de Oswaldo José Ponce Pérez, 51, que era juiz federal em Caracas. Após ver o filho mais velho ser assassinado, Pérez abandonou a Venezuela por perseguição política. No Brasil trabalhou inicialmente numa fazenda em atividade análoga à de escravo; depois, em Boa Vista, passou a tocar e a cantar em bares, mas, na semana passada, conseguiu a revalidação do seu diploma de Direito.
“Aqui estou 100% melhor do que em Caracas. Tem comida, tem segurança… agora que poderei voltar a atuar, estou ainda mais esperançoso. Quero inclusive ajudar judicialmente outros imigrantes”, disse Ponce Pérez. Ele veio para o Brasil com dois filhos, uma menina de 14 anos e um rapaz de 27. “Meu sonho é ver a minha filha juíza no Brasil”. Ele já está ensinando direito constitucional brasileiro para a filha.
“Acreditamos que a presença do Oswaldo na equipe vai facilitar não apenas a comunicação, mas a construção de uma relação de confiança com os imigrantes, pois eles já chegam muito desconfiados da justiça e do governo”, disse o juiz Erick Linhares.