Sempre que as bases do modelo capitalista cognitivo demonstram sinais de esgotamento, institucionalizando um colapso político e econômico por entre os muros de nosso vasto território nacional, com efeitos deletérios de ordem macrossocial, o Direito do Trabalho torna-se o epicentro das calorosas discussões levantadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, como uma das principais causas – ou, então, como muitos discursam, a causa principal – das ignóbeis agruras que contaminam o País.
O discurso não é novo, mas se recicla, a cada crise instalada. O lema da vez é a reformulação do Direito do Trabalho, que perpassa por uma nova formatação da própria Justiça do Trabalho. Se o Direito do Trabalho surgiu como resposta do Estado frente ao solapamento de direitos trabalhistas comezinhos a partir do século XIX, esse mesmo Direito do Trabalho não se presta como paradigma normativo a resolver a complexidade das relações jurídicas existentes na chamada sociedade em rede.
Levantam-se as vozes do progresso, disseminando pelos meios midiáticos um discurso nefasto, antanho e ideológico, direcionado a deslegitimar o Poder Judiciário Trabalhista, porque “paternalista ao extremo”, descompromissado, pelas suas “peraltices”, com a acerbidade do momento histórico vivenciado pela Nação.
Para isso, estampam, em manchetes de revistas e de jornais, decisões exaradas pela Justiça do Trabalho sem o esmero de se proceder a uma prévia e profícua análise dos fatos e fundamentos que lhes serviram de subsídio. E assim o fazem com tom de deboche, no nítido intuito de ridicularizar sua imagem e seu honrado nome.
A Justiça do Trabalho, aos olhos dessa míope concepção, ergue-se como um entrave ao desenvolvimento econômico. Em seu vestíbulo, os seguintes dizeres: “Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!” (1). Enquanto tolos lançam palavras ao vento, os sábios buscam perpetuar ensinamentos. Não se pode atribuir ao Direito do Trabalho e à Justiça do Trabalho a culpa pelos malfadados caminhos soerguidos pelo mercado econômico nacional. Ao Direito do Trabalho não se conferiu a possibilidade de criar ou reduzir empregos; tampouco, foi a Justiça do Trabalho granjeada com a possibilidade de regular a economia globalmente considerada. Não foi o Direito do Trabalho o precursor da crise. Também não é a Justiça do Trabalho sua fiel mantenedora.
O DNA da tormenta está na irresponsabilidade com o manejo dos recursos públicos; na corrupção que está entranhada ao poder; na desregulação das práticas econômicas; no descaso com o bem comum; nas muitas palavras e pouquíssimas ações.
A litigiosidade, marca de nosso modelo jurídico, de outra ponta, está centrada em múltiplos fatores, desde as reiteradas violações a direitos constitucional e infraconstitucionalmente assegurados, praticadas pelas grandes empresas, como também é resultado das práticas terceirizantes, que encontram, no Estado, seu maior cliente e litigante.
Atualmente, são mais de 200 milhões de ações em trâmite em todo o Poder Judiciário, o que, em média, representa uma ação para cada dois brasileiros, segundo dados recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça. Ainda assim, a Justiça do Trabalho responde por apenas 8% (oito por cento) desse total. É, sem sombra de dúvidas, o ramo mais célere do Poder Judiciário, vocacionado à composição negociada de seus conflitos, cumprindo papel de destaque em termos de arrecadação aos cofres públicos.
De sorte que, se se propõe a preponderância do negociado sobre o legislado, como soam as vozes reformistas, primeiro, há de se pensar em uma reforma sindical. Sindicatos fortes e infensos ao peleguismo, livres dos conchavos e das práticas corruptivas. Somente a partir dessa mudança – cultural – é que se pode pensar em um modelo negociado das relações trabalhistas, na medida em que representarão os instrumentos coletivos fontes de incremento do espectro de proteção e de ampliação dos direitos sociais, jamais seu desmonte.
Mas, enquanto essa realidade não desraiga de seu invólucro utópico, a Justiça do Trabalho cumpre o papel fundamental de construtor de cidadania, ao menos, grande parte dela, já que o conceito de cidadania não se esgota na dimensão laboral, mas, sobretudo, em questões relacionadas à educação, à segurança, à saúde, ao lazer, ao transporte, à previdência social, à moradia, à alimentação, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados.
Trabalhador sem direitos, não gera renda. Empregador insolvente, não gera empregos. Não à toa que o valor social do trabalho está geograficamente alinhado, no texto constitucional de 1988, – lado a lado – à livre iniciativa, como fundamento da República. Embora sempre conflituosa a relação dicotômica entre capital x trabalho, um não sobrevive sem o outro.
A Justiça do Trabalho está aberta a ambos, sem nunca perder de vista que a emancipação do ser humano somente é alcançada pelo trabalho dignamente considerado. Enquanto existir trabalho – escutem em bom tom – permanecerá livre e alvissareira a Justiça do Trabalho. Como declamou Mário Quintana:
Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…
*Fernanda Antunes Marques Junqueira é juíza substituta do Trabalho, mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais
1. Alighieri. Dante. Divina Comédia. Canto II