Ao participar de um evento pela OAB em 2012, a advogada Márcia Rocha ouviu de um colega que houve dificuldades em encontrá-la no Cadastro Nacional de Advogados. Pudera: travesti, a profissional está registrada com seu nome masculino. Esse embaraço, no entanto, está perto de acabar. Em maio deste ano, a Ordem autorizou que advogados travestis e transexuais, assim como estagiários, possam utilizar o nome social em seus registros na entidade, inclusive na carteira da OAB.
“A decisão da OAB não é uma aberração jurídica, é baseada nos princípios constitucionais da dignidade humana e da isonomia”, afirma a advogada, que desde aquele incidente tem militado na entidade pelo uso do nome social. “É um passo importante para os advogados e advogadas que têm uma imagem e uma vida diferentes de seu registro civil e que se sentem constrangidas em algumas situações.”
Segundo Márcia, a aprovação do uso do nome social por advogados e advogadas travestis e transexuais é uma grande contribuição da OAB na diminuição do preconceito. “Tudo o que acontece no sentido legal para conceder direitos é importante. Com esta medida, delegados, juízes e cartorários têm de respeitar o nome social, pois existe um respaldo legal. Não é militância, é algo que quebra preconceitos”, explica.
O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, comemorou a decisão tomada pelo Conselho Federal da entidade. “O nome social traz dignidade às colegas e aos colegas travestis e transexuais. Dignidade que é essencial para exercer com altivez a profissão da cidadania. A Ordem sempre foi guardiã dos direitos humanos e damos mais um passo em direção à igualdade e ao respeito”, afirmou.
A proposição original dizia que o nome social, além de assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, concretiza o direito fundamental à identidade de gênero, ao livre desenvolvimento da personalidade e à não discriminação. “A utilização do nome social por travestis e transexuais minimiza constrangimentos, uma vez que serão identificados (as) por nomes que correspondem ao gênero com o qual se identificam e externam, evitando que ao serem identificados (as) pelo nome civil, sejam compelidos (as) a expor a sua privacidade e intimidade, evitando explicações do porquê suas identificações civis são completamente discrepantes das identidades sociais apresentadas”, continua.
A aprovação da medida não se deu de uma hora para outra, tendo sido construída ao longo de quatro anos na OAB. Tudo começou com a decisão de Márcia –que milita na área de direito imobiliário– de ter seu nome social associado à profissão que exerce. Membro da Comissão de Diversidade Sexual da OAB de São Paulo, propôs ao colegiado que estudasse maneiras de implementar a medida.
Após estudos aprofundados sobre o tema, a presidente da Comissão paulista, Adriana Galvão, levou a proposição ao presidente da Seccional, Marcos da Costa. O dirigente apresentou o tema no Colégio de Presidentes, instância na qual foi aprovada por unanimidade. O próximo e decisivo passo era a chancela do Conselho Pleno, formado por 81 conselheiros de todos os Estados. Em 17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia, por votação unânime, o nome social foi finalmente autorizado pela Ordem.
“A OAB é muito plural e aberta à diversidade, mas ainda vivemos em uma sociedade conservadora. Estava apreensiva quanto ao resultado da votação”, afirma Adriana Galvão. “Foi uma demonstração que a Ordem apoia a inclusão social. Quando se tem o direito de exercer a profissão, a pessoa ganha inserção na sociedade e é mais aceita. Mostramos o quanto a entidade é sensível e preocupada em reconhecer a dignidade dessas pessoas para trabalhar com tranquilidade. Abrimos novo espaço de reconhecimento da cidadania.”
O presidente da Seccional de São Paulo, Marcos da Costa, relembra o trâmite para a aprovação da medida. “Estávamos confiantes porque todas as lideranças da advocacia são vocacionadas aos direitos humanos e em defesa da tolerância”, explica. “Qualquer ser humano tem o direito a não ser discriminado ou hostilizado por opções e escolhas pessoais, incluindo as de caráter social. A presença do nome social permitirá que os nossos colegas que optarem por aparência diferente do registro e que mais se adeque à sua forma de vida sejam respeitados sem constrangimento.”
Regulamentação
A regulamentação sobre o nome do uso social suscitou muitas dúvidas, principalmente em relação à carteira da OAB, que funciona como documento oficial com fé em todo o território brasileiro. A Ordem esclarece que a carteira continuará apresentando o nome civil dos advogados, ou seja, o nome com que foi registrado ao nascer. O nome social será um campo extra a ser preenchido apenas pelos profissionais que assim solicitarem.
A Resolução n. 5, de 7 de junho de 2016, regrou os procedimentos para a inserção do nome social, inclusive o definindo: “O nome social é a designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida e será inserido na identificação do advogado mediante requerimento”.
O procedimento é auto declaratório. A advogada ou o advogado travesti ou transexual que quiser ter o nome social nos registros da OAB deve solicitar a alteração à Seccional onde está inscrita (o). Há um período de seis meses para que o Sistema OAB se adapte às mudanças. A regra valerá a partir de janeiro de 2017.
Além da carteira de identificação, o nome social estará presente em outras instâncias, como por exemplo no Cadastro Nacional de Advogados e no Cadastro Nacional de Sociedades de Advogados. Também poderá ser utilizado no registro de chapas para eleições na OAB e em eventuais processos ético-disciplinares na entidade. Também foi alterado o Código de Ética e Disciplina da OAB, permitindo, por exemplo, o uso do nome social em cartões de visita.
Para saber mais sobre a regulamentação do uso de nome social por advogados travestis e transexuais, acesse a Resolução n. 5/2016, a Resolução n. 6/2016 e a Resolução n. 7/2016.
Voto
O conselheiro federal Breno Dias de Paula, de Rondônia, foi o relator da matéria no âmbito da OAB Nacional. Seu voto foi aprovado por unanimidade. Segundo o advogado, ele guiou seu voto pela chamada teoria da sociedade, pela qual a sociedade deve estar preocupada em interpretar seu papel dentro das exigências sociais para o estabelecimento do bem da coletividade, agindo em prol da liberdade de todos. Para ler a íntegra do voto, clique aqui.
“Quando se diz sobre bem coletivo não há dúvidas, os termos são explícitos e claros à interpretação, o que nos dizeres de [Alex] Honneth seria incluir todos, via reconhecimento, nos procedimentos de responsabilidade social”, votou.
“Conservar o ‘sexo masculino’ no assento de Advogado de um dos proponentes, quando o mesmo se apresenta perante seus clientes e Tribunais como Advogada, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o proponente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente e exercer livremente sua atividade profissional de advocacia”, continuou.
Para o conselheiro federal, temas de política de inclusão podem, em um primeiro instante, ter resistência de setores mais conservadores, mas que ela é facilmente superada quando se perceber que o fundamento principal da proposição é a liberdade e a igualdade. “Veremos a efetivação do princípio da dignidade humana e a garantia do exercício pleno da profissão, sem constrangimentos”, diz.
“O Conselho Federal da OAB tem cada vez mais lutado pela efetivação de pautas constitucionais e garantias fundamentais, elevando, assim, fundamentos da República como a igualdade. Andamos bem ao interpretar a Constituição com Justiça”, afirma, lembrando que a decisão da Ordem levou outros órgãos do Judiciário a se debruçar sobre o tema.
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça publicou proposta de resolução para regulamentar o uso do nome social em serviços judiciários (leia mais aqui). Há também resoluções que autorizam o uso do nome social em ministérios e nos âmbitos de diversos Estados e municípios.
Márcia Machado Melaré, conselheira federal por São Paulo, militou pela aprovação da medida desde o começo. Ex-secretária-geral adjunta do Conselho Federal, ela relembra que na época foi criada a Comissão Especial de Diversidade Sexual, que elaborou vários estudos sobre o tema.
“O trabalho é de construção. Podemos levar algumas pedradas no começo, mas vamos levando. A OAB é a casa da cidadania e dá exemplos fundamentais que são seguidos por outras instituições. Ter agasalhado essa pauta faz com que o movimento dê um salto muito forte. A partir de agora, nenhum outro conselho de classe terá justificativa para barrar medidas semelhantes”, explica.
Futuro
Não há levantamento sobre o número de advogados/estagiários travestis e transexuais. Mesmo que sejam poucos, afirmam os entrevistados, a possibilidade do uso do nome social pode encorajar essas pessoas, normalmente marginalizadas na sociedade, a entrar para a carreira.
“Está cada vez maior o número de transexuais e de travestis nas universidades. São espaços a serem conquistados no futuro. Com uma entidade de classe do peso da OAB abrindo as portas a eles, elas poderão buscar esta profissão”, diz Adriana Galvão, presidente da Comissão da Diversidade e Combate à Homofobia da OAB-SP.
A nova medida estará em debate no VI Congresso Nacional de Direito Homoafetivo, que ocorrerá entre os dias 31 de agosto e 2 de setembro, em São Paulo. O evento também contemplará a segunda edição do congresso internacional sobre o mesmo tema. A abertura será com palestra da advogada Maria Berenice Dias sobre o tema “A construção jurídica da pessoa: uma reflexão sobre desafios contemporâneos para a afirmação dos direitos LGBTI”.
Nos dias seguintes, painéis abordarão temas como a defesa dos direitos LGBTI nas cortes internacionais, reprodução assistida, pluralidade de famílias, multiparentalidade e parentalidade socioafetiva, assédio moral, mercado de trabalho e a proteção constitucional da diversidade sexual, entre outros.
A questão de travestis e transexuais será trata em três eixos: “Poder Judiciário e identidade de gênero: competências, jurisprudência e reconhecimento jurídico das identidades sociais”, com Guilherme Madeira; “Transfeminismo, sociedade e direito: rupturas e construção de novas relações sociais”, com Jaqueline Gomes de Jesus; e “Autonomia, direito à saúde e reconhecimento jurídico das identidades de gênero: análise crítica à luz do Poder Judiciário Brasileiro”, com Miriam Ventura.