Enigmática como “A Mandíbula de Caim” – instigante quebra-cabeças formulado como ficção policial por Edward Powys, que assinou como “Torquemada”, em 1934 – a Reforma Tributária chega ao Senado embalada pelo sucesso da aprovação pela Câmara, após décadas de pelejas frustradas. Ela embute milhões de combinações possíveis, assim como no romance que volta a surgir nas livrarias – fenômeno editorial impulsionado pelo TikTok. Mas apenas uma é a sequência correta. O livro exige que as páginas sejam organizadas na progressão certa, para revelar as vítimas de assassinato e seus algozes. A reforma impõe que sejam corrigidos no Senado fatores de instabilidade no varejo – como a elevadíssima tributação que penaliza considerável parcela do setor de serviços – para que o conjunto possa obter nova aprovação dos deputados.
O nó górdio do projeto, que já mobiliza senadores mesmo antes do início da tramitação naquela Casa, está justamente em uma contradição: embora o governo assevere que não haverá aumento da carga tributária, o que se observa é que, em alguns casos pontuais, ela existe e atinge níveis insuportáveis. Os escritórios de advocacia pagam hoje entre 11,33 e 14,55% de impostos sobre o faturamento. A reforma extingue PIS (0,65%) e Cofins (3%) para criar o IBS/CBS, que pode chegar a 25%. São mantidos o CSLL e IRPJ que, juntos, podem custar 10,88%, o que eleva a carga tributária, hoje de até 14,55% para inadmissíveis 35,88%. Isso porque o projeto decreta o fim do regime tributário diferenciado, aplicável, atualmente, aos prestadores de serviços de profissões regulamentadas como sociedade unipessoal, conforme bem assinala a Nota Pública da OAB Rondônia, emitida pelo presidente Márcio Nogueira.
“O projeto aprovado pelos deputados traz inúmeros avanços para o país, é inegável – observa o presidente da Ordem, Beto Simonetti, para acrescentar que “há, no entanto, lacunas, que podem ser corrigidas a tempo pelo Senado, em nome da segurança jurídica e da efetividade da reforma ao que ela se propõe: corrigir disfunções e desigualdades, desburocratizar a tributação e alavancar o desenvolvimento econômico do Brasil. O Senado terá a oportunidade única de preencher tais lacunas”. Simonetti antecipa a mobilização da categoria para acrescentar que “A OAB cumprirá seu papel, colaborando com o Congresso Nacional no aprimoramento da PEC 45”.
Dois pontos do texto demandam atenção dos senadores, aponta o presidente nacional da Ordem: o tratamento adequado das sociedades de profissões regulamentadas; e o cálculo diferencial e do repasse compulsório no preço dos contratos vigentes. O regime específico para sociedades profissionais se justifica, segundo ele, porque elas prestam serviços a outras pessoas físicas e não a pessoas jurídicas. Como as pessoas físicas tomadoras de serviços não poderão descontar créditos de IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), é preciso que a PEC aprovada pela Câmara seja aperfeiçoada para promover o incentivo à emissão de notas fiscais. Sem essa correção, haverá inestimável prejuízo na arrecadação do imposto sobre a renda.
A OAB propõe, para sanar essa inconsistência, um regime específico para as sociedades profissionais, com a fixação de escalonamento de alíquotas conforme a essencialidade do serviço. Beto Simonetti afirma, na nota que assina em nome do Conselho Federal, que “a manutenção do regime tributário adequado é fundamental para o fortalecimento da nossa profissão, a continuidade dos serviços jurídicos de qualidade e a promoção do acesso à justiça em todo o país”. A nota destaca, igualmente, a necessidade de previsão expressa de repasse compulsório do IBS para o contratante. A medida também permitiria aos contribuintes o repasse do ônus do IBS para o consumidor final, de forma que o imposto não se torne cumulativo, com validade para a inclusão do imposto nos contratos já firmados, para que sejam evitadas disputas contratuais.
O nó górdio, impossível de ser desatado, foi cortado, segundo a lenda, por Alexandre, o Grande, que usou de bom senso e um corte certeiro de espada. O Brasil precisa desatar o nó em que se transformou o sistema tributário brasileiro, que prejudica quem paga imposto e produziu, em 2021, R$ 550 bilhões em sonegação, segundo a Receita Federal. Não foi possível, até hoje, encontrar consenso para aprovação da reforma porque as partes envolvidas sempre se empenharam em ganhar, se possível com a transferência dos ônus para alhures. É preciso que impere o bom senso nos debates e que o Brasil se conscientize de que todos ganham com o combate à sonegação, sem necessidade de elevar os custos para quem paga.