O sangramento da República é a imagem mais representativa do ano de 2017, que impôs aos defensores do Estado Democrático de Direito desafios tão complexos quanto é o atual cenário do país em suas diversas dimensões – social, política, econômica e cultural.
Neste mesmo espaço de retrospectiva da ConJur, veículo fundamental para a advocacia brasileira, escrevi no ano passado um artigo que começava da seguinte maneira: “Em um dos anos mais conturbados da história nacional, a advocacia não se furtou de sua missão de lutar por um país mais justo, solidário e fraterno”.
O texto elencou as ações da OAB, em 2016, em defesa das prerrogativas profissionais e pelo aprimoramento do sistema de Justiça – atuando, por exemplo, pela revogação de súmulas contrárias ao CPC e para que os horários de atendimento nos tribunais fossem compatíveis com a necessidade dos cidadãos.
Devemos lembrar que foi no ano passado que o colega Roberto Caldart, de Santa Catarina, foi morto por policiais militares enquanto trabalhava. Este ano de 2017 só reforçou o entendimento de que, para cessar esse tipo de tragédia, é preciso que as autoridades de alto escalão passem a tratar com rigor e intransigência o desrespeito às prerrogativas profissionais da advocacia.
Neste ano, a OAB atuou de forma veemente em favor da aprovação do projeto de lei, de autoria do senador Cássio Cunha Lima, que estabelece punições para quem viola os direitos da defesa. O projeto já foi aprovado pelo Senado e pelas comissões da Câmara. Agora, depende apenas de aval dos deputados federais, no plenário, para seguir à sanção presidencial. O texto tramita como PL 8.347/2017.
Defender as prerrogativas da defesa não é tarefa fácil. Por isso, a OAB rechaça os caminhos fáceis e prefere tomar os rumos certos. O projeto em questão beneficia toda a sociedade. Ele não dá nenhum tipo de salvo conduto para advogadas e advogados cometerem crimes. Todo e qualquer profissional da advocacia deve responder por seus atos, como qualquer cidadão. Mas quem exerce a advocacia não pode responder pelos atos de outras pessoas.
O projeto em tramitação estabelece penas para um crime que já existe, para aquilo que a lei já diz que é errado. Do jeito como está, sem as penalidades definidas, o que vale é a impunidade para quem está acostumado a desrespeitar a legislação, que considera crime o desrespeito às prerrogativas da advocacia – assim como é considerado crime o desacato a juízes e a integrantes do Ministério Público.
Em 2017, a OAB também foi ao Supremo Tribunal Federal com uma ação contra o uso abusivo e ilegal das conduções coercitivas. E já obteve liminar favorável.
A condução coercitiva, figura prevista no processo penal brasileiro, só deve ser utilizada após prévia intimação, em tempo razoável, e diante da resistência do intimado. Preocupa a banalidade com que esse instrumento tem sido tratado. Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 444, o Conselho Federal da OAB pede que o STF ofereça interpretação conforme à Constituição Federal do artigo 260 do Código de Processo Penal.
A aprovação do projeto e o julgamento da ADPF como procedentes são fundamentais para que, na retrospectiva do próximo ano, o cenário dos direitos e garantias fundamentais no Brasil esteja melhor do que neste e nos anos passados.
São recorrentes em nosso país o desrespeito a valores básicos da democracia. Grampos ilegais nas conversas entre advogados e seus clientes continuam sendo um problema grave a ser enfrentado. A OAB tem sido implacável contra essas situações. Mas elas se proliferam de forma indiscriminada e aleatória, dificultando uma ação efetiva. Por isso, vale ressaltar, o exemplo das autoridades de alto escalão é fundamental e serve de referência para as autoridades que estão mais próximas do dia a dia do cidadão.
Neste ano, a OAB teve que atuar em situações como a violação do sigilo das comunicações entre o advogado Alberto Zacharias Toron e seu cliente Aécio Neves. Do mesmo modo ocorreu quando o jornalista Reinaldo Azevedo e sua fonte Andrea Neves tiveram uma conversa divulgada de forma ilegal. A proteção das conversas entre jornalistas e fontes está na Constituição para que seja assegurado à sociedade o direito de ser bem informada.
É preciso atuar com independência e seriedade. A OAB não se furta em defender direitos. Nem em cobrar responsabilidades – como fez no caso do senador Aécio Neves quando entendeu que as acusações contra ele eram muito graves.
A defesa da cidadania requer rigor na aplicação da lei. Ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal e sem o direito à ampla defesa assegurado. Ao mesmo tempo, o mandato eletivo não pode servir de escudo para um indivíduo evitar responder por seus atos. Por esse motivo, no ano passado, a OAB defendeu a cassação de Eduardo Cunha e de Delcídio do Amaral. A lei não tem partido nem ideologia. Ela deve valer para todos.
A lista de ações da OAB em defesa das prerrogativas é longa. Convido os leitores a acessarem, no site do Conselho Federal, uma lista frequentemente atualizada com essas ações.
Vitórias
Este foi um ano de vitórias para a advocacia que fortalecem a representação do cidadão. A mais recente foi a sanção, em 19 de dezembro, do Projeto de Lei da Câmara 100/2017, que suspende os prazos processuais no período que vai de 20 de dezembro a 20 de janeiro, e estende a interrupção dos trabalhos, nesse intervalo, em relação a audiências e sessões de julgamento. A medida é importante para garantir o período de férias aos advogados que militam nessa área.
Outra importante conquista foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido de garantir que o Ministério Público não possa intervir em contratos advocatícios. O STJ também mudou seu regimento interno, atendendo a pleito da OAB, para que as sustentações orais sejam garantidas a todos os advogados com casos em julgamento, sem mais confusões. Agora, o texto assegurou aquilo que já estava expresso no CPC, podendo o advogado fazer a inscrição para a sustentação oral até o início da sessão.
No Tribunal Superior do Trabalho, foi garantido à advocacia realizar o levantamento de alvarás. No âmbito do Conselho Nacional de Justiça, continuamos na luta contra restrições de acesso de advogadas e advogados em fóruns: as revistas devem ser feitas de maneira igual a todos que ingressam, inclusive procuradores e magistrados
Da mesma forma, foi decisiva a atuação da OAB para que o STF determinasse, em setembro, que as condenações contra a Fazenda Pública devem seguir o IPCA-E no cálculo dos valores, garantindo igualdade nos julgamentos. A Ordem atuou ainda junto a parlamentares por melhorias no texto do substitutivo da PEC dos Precatórios, diminuindo o prazo para pagamento das dívidas do Estado com os cidadãos e fortalecendo o Estado de Direito.
Também nos dá satisfação a aprovação de projeto de lei que obriga presença da advocacia na conciliação, fortalecendo e dando mais segurança aos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos. Outra vitória da advocacia foi a regulamentação, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, do acesso aos autos de inquérito e investigações, assim como a contagem de prazos em dias úteis na Justiça do Trabalho. Os advogados e advogadas de todo o país também já podem contar com atendimento diferenciado e prioritários nas agências do INSS após ação da Ordem.
Em defesa da sociedade e do jurisdicionado, também garantimos no STF a constitucionalidade da Lei de Cotas em concursos para o serviço público e continuamos na luta contra o aumento injusto e desproporcional das custas judiciais em todos o país.
Impeachment
Episódio lamentável de 2017 foi a descoberta de atos praticados por integrantes do primeiro escalão do governo, inclusive pelo presidente da República, que contrariam a lei e os interesses da sociedade. Se 2016 foi considerado pela OAB um dos anos mais difíceis da história brasileira, por causa do impeachment de Dilma Rousseff, 2017 figura ao lado desses marcos históricos tristes.
A Ordem dos Advogados do Brasil, maior entidade da sociedade civil brasileira, com mais de 1 milhão de inscritos, fez uma minuciosa análise dos fatos. A conclusão técnica do plenário Conselho Federal da OAB, instância máxima de deliberação da entidade, é que o presidente Michel Temer cometeu o crime de responsabilidade descrito pela Constituição ao ouvir do dono da Friboi, Joesley Batista, o relato de ao menos um crime e não adotar nenhuma providência. A lei é clara: a punição para o crime de responsabilidade é o impeachment.
Assim como ocorreu em 2016 no caso de Dilma Rousseff, a análise pelo plenário do Conselho Federal foi precedida por apreciação das seccionais da OAB nos Estados. Naquele caso, o então relator da Lava Jato no STF, ministro Teori Zavascki, atendendo requerimento da OAB, retirou sigilo da delação de Delcídio do Amaral em 15 de março de 2016. Em 17 de março, as seccionais da OAB nos Estados fizeram suas próprias deliberações. No dia seguinte, o plenário do Conselho Federal se reuniu e decidiu sobre o assunto.
Em 2017, o relator da operação “lava jato” no STF, ministro Edson Fachin, liberou o material que estava sob sigilo em 18 de maio de 2017. No dia 19, as seccionais da OAB fizeram suas consultas. No dia seguinte, o Conselho Federal fez sua reunião e chegou à conclusão de que estão presentes os elementos para o impeachment de Michel Temer.
Sociedade
Temas amplos da sociedade também fizeram parte da pauta da OAB neste ano que chega ao fim. A defesa do princípio constitucional da igualdade entre particulares e servidores públicos levou a OAB a entrar coma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 496 no STF, contra a eficácia do crime de desacato, previsto no artigo 331 do Código Penal.
A Ordem entende que a tipificação viola a igualdade entre os cidadãos e os servidores. Esse tipo penal cria obstáculos também aos advogados, que muitas vezes têm sua atuação plena tolhida, prejudicando o próprio cliente.
O combate ao estelionato praticado contra estudantes foi outra batalha encampada ainda com mais força pela OAB em 2017. Ao dar seu aval para cursos técnicos e tecnólogos de serviços jurídicos, o Ministério da Educação abriu as portas para a mercantilização desenfreada da educação. Trata-se de um embuste contra os estudantes que não encontram no mercado de trabalho espaço de absorção para essas formações. É preciso mais rigor na avaliação das instituições e cursos. São esses os argumentos que a OAB apresenta na Ação Civil Pública 1014053-90.2017.4.01.3400, na 7ª Vara da Justiça Federal do DF.
Em novembro, o Conselho Federal da OAB e outros 16 conselhos profissionais publicaram nota oficial da segunda reunião do Fórum Permanente sobre o Ensino Superior na Visão dos Conselhos Federais de Profissões Regulamentadas. A manifestação reitera o compromisso com a defesa da educação superior e da valorização de profissionais devidamente habilitados junto ao Conselho Profissional competente com o filtro necessário ao ingresso na profissão.
Também em novembro, uma importante decisão veio do Superior Tribunal de Justiça. A 4ª Turma decidiu por unanimidade que a OAB tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de consumidor. O ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso, usou como referência entendimento do Supremo de que OAB é um serviço público independente, não se sujeitando à administração pública direta e indireta, nem se equiparando às autarquias e demais conselhos de classe.
A OAB continuou neste ano sua atuação contra os abusos das Agência Reguladoras. Um dos casos mais evidentes é o da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que tem atuado muito mais na defesa dos lucros das empresas que deveria fiscalizar do que em benefício do mercado e dos consumidores. A nova regra que permite a cobrança de taxa extra para o embarque de malas já entrou em vigor.
Na prática, vimos que era falso o argumento de que essa taxa permitiria a redução dos preços das passagens. A OAB aguarda julgamento da Ação Civil Pública 0000752-93.2017.4.01.3400 na 4ª Vara da Justiça Federal do DF, ajuizada contra essa novidade contrária ao bolso do consumidor.
Da mesma forma, a OAB seguiu implacável na defesa da correção urgente da tabela do Imposto de Renda, nos termos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.096, que apresentou ao STF. E, nessa linha, atuou contra a recriação da CPFM e contra a criação e aumento de tributos.
Conferência da Advocacia
No final de novembro, a XXIII Conferência Nacional da Advocacia reuniu mais de 22 mil advogados de todas as partes do país. Durante a conferência, além de diversos temas relacionados a prerrogativas, foram debatidos em diferentes aspectos pautas relacionadas às garantias dos direitos fundamentais.
O maior evento jurídico do mundo provou a força da advocacia. Advogados e advogadas debateram temas caros à classe e urgentes para a sociedade, construindo uma agenda de atuação pautada pelo encontro em vez do confronto. Foram quatro dias intensos de atividades, 40 painéis temáticos e mais de 50 eventos especiais, além de uma feira jurídica e cultural.
Voltando a São Paulo após quase 60 anos, a XXIII Conferência Nacional da Advocacia firma-se na agenda dos eventos essenciais para pensar os rumos do país, tendo a força de mais de 1 milhão de profissionais como força propulsora. Foi uma demonstração inequívoca de força e união por um país melhor.