O crescimento da estrutura da advocacia pública federal e seu investimento em especialização e integração são a razão de seus mais recentes — e impressionantes — números. A opinião é de especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico em relação a resultados divulgados recentemente pelo Anuário da Advocacia Pública do Brasil.
A Procuradoria-Geral da União, órgão da Advocacia-Geral da União responsável pela defesa de entes da administração direta, registrou aumento expressivo na quantidade de vitórias na Justiça. De todas as decisões proferidas em 2014 tendo um ministério como parte, 53% foram favoráveis à União, e 13% parcialmente favoráveis. Em 2013, o total de julgados a favor do governo não passou de 48% e, em 2012, de 38%. No Supremo Tribunal Federal, o índice de vitórias totais da AGU somou 50,6%, além dos 8,2% em vitórias parciais, segundo números da Secretaria Geral de Contencioso. Para advogados públicos e privados, os defensores do Estado hoje se preparam e se especializam mais, estão mais presentes nos julgamentos e aprenderam a construir suas estratégias com base em dados.
É o que confirma o procurador-geral da União, Paulo Henrique Kuhn. “Desde o fim de 2012, nosso gerenciamento é feito com base nos resultados. Tudo o que acontece em cada uma das nossas unidades — estatísticas, quanto ganhamos, quanto perdemos, quais as teses usadas e onde estão essas decisões — é compartilhado. Trabalhamos para integrar as unidades, com o objetivo de que essas informações circulem”, explica. Não é um trabalho fácil. São 68 unidades e 930 advogados da União em todo o país. Cada um deles avisa à central, em Brasília, quando um processo ajuizado tem o potencial de se tornar uma demanda nacional.
“O fator principal dessa mudança é a capacidade de direcionar a atuação para as matérias em que temos mais dificuldades, em que estamos perdendo”, diz Kuhn. São 3,5 milhões de processos em tramitação sob a responsabilidade da PGU e uma média de mil decisões por dia — 70% dessa demanda vinda de servidores ativos e inativos. Isso sem contar ações que pipocaram em todo o país contra o programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde; o Exame Nacional do Ensino Médio, do Ministério da Educação; e os leilões do pré-sal e para concessão de aeroportos e rodovias. Em todos os casos, as poucas liminares concedidas foram derrubadas.
A União ganha mesmo quando perde. É prática comum a celebração de acordos em casos com pouca ou nenhuma chance de vitória, com o pagamento de apenas parte do que é pedido nas ações. Em 2013, a PGU fez 8.822 conciliações e fechou 477 acordos em cobranças. “Conseguimos reduzir o custo que a União tem com esses processos, nos quais fatalmente terá que pagar. Reduzimos o número de processos, os juros e o percentual do valor a ser pago, porque quando fazemos acordo, antecipamos o pagamento mediante RPV e nesses acordos são dispensados honorários advocatícios”, afirma Kuhn. “Reduzimos a quantidade de litígios. Antes, a União era o maior litigante no Superior Tribunal de Jsutiça. Hoje, é o quarto maior. Isso é fruto de um refinamento da atuação.”
Os números da arrecadação acompanham o das vitórias. Só a PGU levou aos cofres federais R$ 150 milhões e evitou que a União despendesse outros R$ 7,5 bilhões. A Procuradoria-Geral Federal, responsável pelas ações envolvendo órgãos da administração indireta — autarquias e fundações —, não fica atrás. Em 2013, foram 28.343 decisões favoráveis, contra 26.947 desfavoráveis. As vitórias renderam R$ 11,8 bilhões ao erário e impediram gastos da ordem de R$ 49,6 bilhões. Mesmo longe da Justiça, as cobranças foram efetivas. Os protestos em cartório de 24.709 títulos de devedores geraram R$ 63,3 milhões.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que cobra dívidas tributárias de contribuintes, registrou R$ 22,16 bilhões em arrecadação no ano passado, além de R$ 51,42 bilhões que deixaram de ser pagos devido a decisões favoráveis na Justiça. Somem-se a isso os R$ 11,28 bilhões em depósitos judiciais exigidos de contribuintes que discutem cobranças judicialmente. Sua estrutura conta com 2.098 procuradores espalhados em 118 escritórios.
O Banco Central é outro protagonista nessa contabilidade. Apenas em multas a instituições financeiras, arrecadou R$ 14,55 bilhões e evitou o pagamento de R$ 390 milhões em ações a que respondeu. “É verdade que a União e os entes federados têm tido êxito cada vez maior no Poder Judiciário, e isso significa benefícios para a própria cidadania. É um reflexo positivo do esforço do Estado”, diz o procurador-geral do Banco Central, Isaac Sidney Ferreira.
O professor de Direito Tributário na Universidade de São Paulo Heleno Taveira Torres concorda. “O advogado público tem se dado conta de sua função estratégica para o Estado, e não apenas de defesa processual”, reconhece. “A mera resposta no processo já não satisfaz. Ele se vê como advogado do Estado, útil à estratégia, ao rumo escolhido para a sociedade.” Esse envolvimento é a raiz do que os advogados privados chamam de “engajamento” dos procuradores.
“Advogado Luiz Gustavo Bichara – 16/04/13 [OAB-RJ]Hoje, os advogados públicos estão estudando e se especializando mais. E o approach melhorou. É razoavelmente comum ver um procurador aguardando para despachar com o julgador ou fazendo sustentação oral, o que não acontecia antes”, diz o procurador tributário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Luís Gustavo Bichara (foto), que costuma enfrentar esses colegas nos tribunais.
“Os profissionais são muito bons e bem treinados. Há anos observamos essa tendência”, constata o tributarista Luís Eduardo Schoueri, professor de Direito Tributário da USP e sócio do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich e Schoueri Advogados. Ele, que frequentemente protagoniza embates jurídicos de alto nível nas cortes e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais da Receita Federal, aponta ainda outra razão para o salto de qualidade dos advogados públicos, principalmente os procuradores da Fazenda Nacional. “Eles têm se especializado e se tornado conhecidos pelos julgadores. Todos sabem quais são os entendidos em discussões como drawback ou preço de transferência, por exemplo.”
Dr. Alexandre de MoraesChefe de Departamento de Direito do Estado da USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o advogado Alexandre de Moraes (foto) explica com a experiência de quem esteve dos dois lados. “A dificuldade tem sido cada vez maior nos concursos para a advocacia pública, e isso seleciona bem. Hoje temos procuradores dos estados e dos municípios no mesmo nível intelectual da magistratura, dos membros do Ministério Público e de advogados das melhores bancas. O contraditório está mais equilibrado”, crava. Mas em sua opinião, o maior nível de organização da estrutura dos órgãos também tem feito a diferença. “A advocacia pública está se organizando como um verdadeiro escritório, com metas, com especializações.”
Decisões colegiadas
Não é só no contencioso que advogados concursados têm se destacado. Seu nível de envolvimento tem crescido em empresas públicas, a ponto de participarem de decisões importantes para o próprio negócio, como avalia Cleucio Santos Nunes, vice-presidente jurídico de uma das poucas empresas em que o responsável jurídico ocupa uma Vice-Presidência, os Correios. “Nós participamos da diretoria, tomamos decisões colegiadas. Já na oportunidade da decisão, o jurídico tem condições de opinar e às vezes até avalizar algumas decisões da empresa”, diz. A mudança estatutária que valorizou o chefe jurídico nos Correios ocorreu em 2011. “Com esse preenchimento, percebemos um ganho gigantesco de atuação do jurídico. Houve aumento expressivo no número de vitórias na Justiça e também um atendimento mais eficiente para a nossa clientela interna, que são os gestores.”
A guinada tem origem em uma mudança de mentalidade que começou na cúpula da AGU, mais especificamente na cabeça do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. É dele a iniciativa de tornar o advogado público cada vez mais um parceiro dos gestores. “O advogado público tem o papel de assessorar, de opinar, de esclarecer; ele é tão mais forte quanto mais é ouvida a sua opinião”, afirma Adams ao Anuário. Para ele, a advocacia deve ser vista como elemento da estabilidade do Estado. “Hoje, a fala jurídica é fundamental para o Estado brasileiro e a sociedade funcionarem. A AGU tem se notabilizado como um ponto focal de solução e não como um ponto focal de problema.”
Há, porém, um outro lado da moeda. O número expressivo de vitórias da União nos processos pode se dever, na opinião de alguns desses especialistas, a motivos pouco “justos”. É o caso da participação de procuradores nos gabinetes de desembargadores e ministros, como assessores. “Vejo votos cuja redação causa estranheza em relação à história do julgador, que confia demais no conhecimento de seu assessor e não desconfia que esteja sendo conduzido”, opina Schoueri. A questão foi tema de recente debate no Conselho Nacional de Justiça que, no entanto, concluiu que tanto procuradores quanto advogados podem assessorar julgadores, e que estes é que são os autores dos votos. Schoueri lembra, no entanto, que um procurador especializado em determinado assunto tributário ser alçado ao cargo de assessor é visto como uma promoção. Já um advogado com a mesma especialização — e “engajamento” — não aceitaria esse trabalho por não ser financeiramente vantajoso. “O advogado que atua como assessor é mais generalista”, diz.
O também professor de Direito Tributário Ives Gandra da Silva Martins concorda. “O aumento das decisões favoráveis coincide com a introdução, pela PGFN, de procuradores licenciados como assessores dos ministros. Apesar dos protestos do Conselho Federal da OAB, entendeu o CNJ que é constitucional que advogados da Fazenda redijam votos para os ministros. Não é necessário dizer mais nada”, afirma.
Luís Gustavo Bichara aponta ainda outra carta que costuma estar na manga dos representantes do Estado, que não consta no arsenal dos advogados privados. “O terrorismo fiscal e as teorias do consequencialismo estão sempre nas argumentações do Fisco, que diz que o Estado vai ‘quebrar’ se a Justiça decidir a favor do contribuinte”, testemunha. Segundo ele, números levados pelos procuradores aos julgadores trazem cifras bilionárias sem apontar de quantos casos e envolvidos se trata concretamente. “O ‘interesse público’ é o barro jogado na parede, mas nem sempre o interesse público é o interesse do Estado. Por isso, a orientação da Presidência da OAB para a Procuradoria Tributária é contribuir na luta pela cidadania tributária, especialmente visando o respeito às limitações constituicionais ao poder de tributar.”
O Anuário é uma publicação da revista eletrônica Consultor Jurídico, com patrocínio da Caixa Econômica Federal, Petrobras, Norte Energia, Anpprev, Anpaf, Anajur e apoio dos Correios.