“Eu mesmo, nos meus tempos de aventuras, / cheguei a envergar um garboso fardão, / vestido então como ironia dura, / a fantasia pura da ilusão! / juntava-me, naquele instante, aos muitos / que alfinetavam a Instituição / mal sabia eu quais os intuitos, / do destino astuto a interrogação. Um amigo lembrou-me outro dia / que as ironias sempre trazem seu revés / papéis trocados, eis aqui, vida vadia: / fardão custoso, bordado a ouro, vistoso, / me revestindo da cabeça aos pés” (Gilberto Gil, músico, cantor e compositor, em poema lido no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras, para lembrar que já ironizou, em disco, o fardão que agora usa como imortal).
Após tornar imortal a magistral atriz Fernanda Montenegro – única brasileira indicada ao Oscar de Melhor Atriz, pela atuação em Central do Brasil -, já imortalizada, aliás, pelo conjunto da obra, a ABL acerta mais uma, ao empossar Gilberto Gil, outro expoente da cultura internacionalmente reconhecido, na “Cadeira 20”, antes ocupada por Murilo Melo Filho. A eleição de Gil requentou a polêmica inaugurada por Joaquim Nabuco e Machado de Assis, o primeiro a favor e o outro contra a adoção de um conceito mais amplo de ‘humanidades’, em que as letras não tivessem exclusividade. O debate não tem o menor sentido. Ou a Academia não poderia ter acomodado nomes como Oswaldo Cruz, Santos Dumont e Barão do Rio Branco.
Ademais, a ABL, com Gilberto Gil e Fernanda Montenegro, trilha o caminho correto, da dessacralização da cultura e da sua necessária democratização. Milhões de brasileiros só têm contato com um livro através da Bíblia. Mas grande parte desses se comoveu com a atuação de Dora, personagem de Fernanda, que escrevia cartas na Estação da Central. Não deixa de ser o caminho apontado por Darcy Ribeiro: “A cultura não deve ser encarada apenas como sinônimo de erudição, mas como experiência que pode ser vivida em diferentes dimensões – ética, política e econômica. Uma criação cultural que favoreça a ligação entre cultura e justiça social, transformadora e libertária”.
Gilberto Gil registrou isso em seu discurso de posse, ao assinalar que “Entre tantas honrarias que a vida generosamente me proporcionou, essa tem para mim uma dimensão especial, não só porque aqui é a casa de Machado de Assis, um escritor universal, afrodescendente como eu, mas também porque a ABL, fundada em 20 de julho de 1897, representa, mesmo para quem a critica, a instância maior que legitima e consagra, de forma perene, a atividade de um escritor ou criador cultural em nosso país.
– “A Academia Brasileira de Letras é a Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática. Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora, uma questão que merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, aqui, efetivamente, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça”.
O Brasil precisa disso. Precisa de mais esperança, mais poesia, mais amor, alegria e fé. Que o país tenha consciência de que o que falta por aqui de cultura erudita abunda em cultura popular. É por aí que realidade e ficção se misturam na trama da cultura nacional, na criação de épicos com passagens heroicas e cômicas, com pano de fundo em momentos decisivos para a história do país. É daí que personagens deixam escapar traços da personalidade do autor. Que Macunaíma mostra sua porção Mário de Andrade para aprender “o brasileiro falado e o português escrito” – um dos suportes do movimento modernista de 1922.
Que sente a angústia de Caetano Veloso ao compor “London London” no exílio, para enaltecer a liberdade nas ruas da capital inglesa, mas registrar a queixa por estar “solitário em Londres sem medo / andando em círculos aqui, sem rumo”. Que aplaude a monumental irreverência de Nélson Rodrigues em “A Vida Como Ela É”, ou em “Beijo no Asfalto”, uma de suas peças mais aclamadas, escrita para Fernanda Montenegro. É pela cultura que haveremos de poder orgulhosamente emprestar o título do também imortal João Ubaldo Ribeiro para um sonoro brado, retumbante como aquele ouvido às margens plácidas do Ipiranga: Viva o Povo Brasileiro!”
(*) Andrey Cavalcante é ex-presidente e membro honorário vitalício da OAB Rondônia